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Odeio sonhar com o dia em que matei aula para voltar para casa mais cedo, passo o resto do dia de mau humor quando isso acontece, ainda tenho quase uma hora até o despertador tocar, mas não quero ficar na cama, então levanto e vou banhar a água fria ajuda a despertar.
Na cozinha minha mãe já está passando café e preparando uma cuscuz que só ela sabe fazer, nossa condição financeira não é das melhores, mas pelo menos fome nunca passamos e ela é uma cozinheira de mão cheia também, mesmo sem luxos posso dizer que ela deu o melhor e continua dando já que não quer me deixar trabalhar para ajudar nas contas.
— Bom dia filho, acordou cedo.
— Bom dia coroa, perdi o sono — digo.
— Você está bem? — Ela acha que não tenho mais esse pesadelo a muito tempo, parei de contar para não preocupá-la, mas ela sabe quando tem algo errado comigo.
— Só ansioso mesmo, o coordenador do curso falou que tem umas pessoas para entrar hoje — tento desviar o assunto.
— Mas as aulas começaram há duas semanas — ela fez o mesmo questionamento que fiz quando soube.
— Sim, mas na faculdade é assim, enquanto tiver vaga eles vão fazer matrícula.
— Estranho, mas o importante é que você entrou no tempo certo — ela ficou muito feliz quando disse que tinha passado na faculdade — eu vou passar a semana na serra com a dona Arlete, ela vai fazer a cirurgia hoje e acham que vai ser melhor para ela ir para casa da serra.
— Ótimo, vou dar uma festa em casa — digo só para irritá-la.
— Nem pense nisso seu Raylan, a vizinha vai ficar de olho.
— Mãe não sou mais criança, a senhora não precisa arrumar uma babá para mim — agora eu estou irritado.
— Te conheço Raylan, não quero seus amigos vagabundos na minha casa e nem quero ser avó agora.
— Tá mãe, já estou indo para aula, se for para ficar aqui ouvindo a senhora resmungar, prefiro chegar mais cedo na faculdade — ela tem o dom de me irritar.
— Espera, tem uma coisa que eu preciso falar com você — se estava irritado antes, agora estou puto, pois já sei o assunto.
— Não quero saber — falei saindo da cozinha, mas ela vem atrás de mim.
— Raylan, filho ele ainda é seu pai — ela o perdoou tão fácil, mas não sou como ela.
— Ele não é meu pai, ele não é nada meu esse desgraçado devia está morto! — Não consigo controlar minhas emoções e começo a falar muito mais alto — para mim ele está morto!
— Filho, ele quer seu perdão e ele até mandou dinheiro para você.
— Meio tarde para receber a pensão desse merda não é não? — Esbravejo.
— Pelo menos aceite o dinheiro, filho, ele tem obrigação de lhe ajudar — ela não entende, ela não viu o que eu vi.
— Eu prefiro ir e voltar a pé da faculdade do que aceitar qualquer coisa desse lixo.
— Não fala assim do seu pai Raylan — como ela pode defender esse lixo, o covarde nos abandonou e agora simplesmente aparece querendo fazer parte da minha vida.
— Eu vou dizer uma última vez e quero que a senhora entenda de uma vez por todas, meu pai morreu, ele morreu — digo uma segunda vez a fim de que ela aceite que não vou aceitar nada que venha dele.
Perdi até a porra do apetite, saio de casa batendo a porta com força, para piorar no meio da briga esqueci de pegar dinheiro com ela, mas também melhor assim, com certeza ela iria querer me dar o dinheiro que aquele merda mandou, prefiro ir e voltar a pé do que aceitar qualquer coisa dele.
Depois de conferir quanto ainda tenho de credito de passagem na minha carterinha faço uma conta rápida de cabeça, bem se eu for a pé consigo voltar de busão até o meio da próxima semana, é uma caminhada de uma hora, porém nesse horário o sol não é tão quente, não deve ser tão difícil.
Pelo menos um lado bom de ter acordado cedo é que só perdi metade do primeiro horário, estou pingando de suor e completamente exausto, tudo bem não vai ser tão fácil caminhar uma hora todos os dias, mas vou ter que me acostumar, pois aceitar a grana daquele merda não está nos meus planos.
— Pode pegar as anotações de mim se quiser — um dos caras novos diz assim que me sento, ele está na cadeira ao lado.
— O que? — Falei de forma ríspida por conta de meu mau humor, mas ele pareceu não ter se chateado.
— As anotações, o professor já anotou bastante coisa — ele repete, ele deve está querendo ser solicitado por ter chegado agora e não ter amigos ainda.
— Certo, valeu — digo agora sendo um pouco mais simpático.
— Guilherme — ele estende a mão para mim, mas fico um tempo olhando para sua mão até pega-la e me apresento também.
— Raylan.
— Diferente, é um bom nome — ele deve mesmo está desesperado para fazer amigos.
— É uma invenção da minha mãe, tipo ela juntou o nome do meu pai e o dela — explico a origem de meu nome, não costumo fazer isso ainda mais para estranhos, mas já foi também.
— Interessante, bem, meu nome foi dado por uma tia, ela é quase uma mãe para mim também, então minha mãe aceitou a sugestão.
— Legal — é tudo que consigo dizer, para não ser rude falando que não me importo.
Além do Guilherme entrou uma mina muito gata e um outro cara muito gente boa chamado Cícero, depois da segunda aula já estou chamando ele de Ciço — todos estão na verdade — aparentemente ele é rico, mas nem um pouco esnobe, o cara me lembra até um pouco o jeito do Rick — o melhor amigo que já tive.
— Estou completamente perdido cara — Ciço fala no caminho para lanchonete, os caras ficaram com fome e resolveram aproveitar o intervalo entre o segundo e terceiro horário.
— Nem fala irmão, tem umas coisas que já vi que vou precisar estudar muito para entender — Guilherme concorda.
— Vocês deviam falar com o Dan, ele é muito pica ensinado — posso detestar o Daniel, mas verdade seja dita, ele já me ajudou a passar de ano algumas vezes, mesmo sendo sacaneado por mim o tempo todo ele nunca me negou ajuda para estudar.
— Quem é Dan? — Ciço pergunta.
— É o cara que derrubou seu celular — Guilherme responde e penso que é típico do Dan fazer isso, o cara é todo desastrado.
— Mas, dá mais um tempo, pode ser que você entenda melhor, até porque o que ele tem de bom professor ele tem de chato como ser humano — digo.
— Já vai que vou ter que ver muita video aula — diz Guilherme se lamentando.
— No Cálculo posso até ajudar vocês, mas não sou tão bom professor assim — digo.
— Vamos ver como vai ser essa semana, de qualquer forma, se você puder me emprestar suas anotações vai me ajudar bastante, eu sou bom estudando só — Guilherme diz com confiança.
— Já comigo não rola, preciso de alguém me ensinando — diz Ciço.
— Então dá um jeito de convencer o Dan a te ensinar e você vai ver como ele explica melhor até que os professores da matéria, na escola ele fazia isso.
— Vocês estudaram juntos? — Ciço quis saber.
— Sim, desde sempre, sempre caímos na mesma sala.
— Nossa, então são amigos a muito tempo já, você podia falar com ele — Guilherme diz, sem saber que Dan me odeia tanto quanto eu o odeio.
— Não somos amigos, só colegas de classe, ele se acha bonzão demais para ter amigos.
— Faz parte, você vai pedir o que Raylan? — Guilherme muda de assunto.
— O que? — Pergunto por não ter entendido sua pergunta.
— O que você vai comprar para comer? Tô pensando em pegar uma coxinha — ele repete.
— Não estou com fome — na verdade estou morrendo de fome, porém sem grana para comprar qualquer coisa.
— Vou de coxinha também, tá parecendo boa — diz Ciço e ele tem razão, elas estão até cheirando bem.
— Ah, come pelo menos uma, só que não fica chato a gente comendo e você só olhando — Guilherme insiste.
— É que deixei a carteira em casa, saiu à pressa e peguei só a carteirinha que já estava na mochila — invento uma história, mesmo sem precisar, não quero que sinta pena de mim e nem nada assim.
Ciço definitivamente é rico e Guilherme embora não seja, ele pelo menos parece ter uma boa condição também, digo isso, porque ele está usando uma blusa de botões, uma bermuda branca jeans e uma sapatenis que parece caro e assim reparando em sua roupa acabo reparando também em sua aparência, o cara é bonitão, tem uma pele bronzeada, um cabelo castanho escuro, ele usa um óculos quadrado de armação simples, sua barba é rala, seu corpo é magro — não tanto quanto o meu — porém definido, ele deve fazer academia, Ciço é um armário perto da gente, mas Guilherme tem seu charme.
Esses caras devem pegar muita mulher, eu não sou pegador, mas acredite não é por opção, por mim já tinha comido geral, mas como falei antes eu vivo de oportunidades, e ainda não pintou nem uma aqui pela faculdade, mas quem espera sempre alcança já diz o ditado, só preciso ter paciência.
— Eu pago para você — Guilherme se oferece.
— Não, cara, não precisa — me apresso em recusar.
— Besteira mano, posso pagar tranquilo — ele insiste.
— Faz assim a gente racha o lanche assim fica tranquilo — Ciço da sua sugestão e acabo aceitando, eles dois dividem o valor do meu lanche.
— Prometo que pago vocês assim que dê — digo.
— Esquece isso, está tranquilo — Ciço é um cara muito humilde mesmo pelo jeito.
— É relaxa — Guilherme confirma o que Ciço falou — somos brothers agora, não vai fazer drama por causa de um salgado — ele ainda brinca.
— Certo, se vocês dizem, então agradeço a vocês por isso — falei.
Assim ficamos amigos, mas Guilherme depois de dois dias começou a ficar com Tati e essa mina é meio doida, tipo ela pira se ele não fica com ela o tempo todo, assim o resto da semana passa com gente pouco afastado, Ciço de fato precisou de ajuda e resolveu ouvir meu conselho, foi pedir ajuda pro Dan, tenho pena dele que vai ter que aturar esse mala por um tempo.