Prólogo: O Silêncio de Milão



A chuva fina de outono batia contra as janelas panorâmicas da cobertura no bairro de Brera, em Milão, transformando as luzes da cidade em borrões dourados e difusos. Dentro do apartamento, o silêncio era tão espesso quanto o veludo das cortinas. Era um silêncio caro, cultivado ao longo de quinze anos de uma vida confortável, estável e, ultimamente, ensurdecedora.

Paolla estava sentada na poltrona de couro branco, com o tablet apoiado nos joelhos. A luz azulada da tela iluminava o seu rosto, destacando a linha elegante do maxilar e os olhos castanhos que percorriam a minuta de uma pauta para o jornal do dia seguinte. Ela lia, mas não absorvia. As palavras pareciam flutuar, desconexas. A sua mente estava, como quase todas as noites, presa na sensação de que os dias haviam se tornado cópias xerocadas uns dos outros. Acordar, expresso, redação, jantares de negócios, dormir. Repetir.

Do outro lado do quarto espaçoso, Riccardo estava deitado na cama, ainda vestido com a camisa social branca, embora a gravata já tivesse sido abandonada sobre uma cadeira qualquer. Ele segurava o controle remoto como se fosse uma ferramenta de trabalho, trocando os canais com uma impaciência rítmica. Click. Notícias. Click. Esportes. Click. Um filme clássico que já viram mil vezes.

Ele parou. O suspiro dele foi audível, um som de exaustão que não vinha do trabalho na empresa, mas da alma.

— Está tudo bem? — Paolla perguntou, sem tirar os olhos do tablet. Era uma pergunta automática, parte do roteiro que decoraram há uma década.

— O de sempre — respondeu Riccardo, a voz grave e controlada. — Apenas... tédio.

Paolla finalmente levantou o olhar. Ela observou o marido. Ainda era um homem atraente, com a postura firme de quem comanda salas de reunião, mas havia uma sombra nos seus olhos. A mesma sombra que ela via no espelho todas as manhãs enquanto passava o creme anti-idade. Eles eram sócios perfeitos na empresa "Vida a Dois", mas a paixão, aquele fogo que consumia o ar quando se conheceram, parecia ter sido arquivada em algum lugar entre as contas pagas e as férias de verão na Sardenha.

Riccardo voltou a atenção para a TV. A BBC passava um documentário. A música era suave, quase hipnótica, e o narrador, com aquele sotaque britânico polido, começou a descrever dinâmicas sociais modernas.

"...para muitos casais de longa data, a monogamia tradicional deixou de ser a única via. A busca por reacender a chama, a exploração do desejo através da não-monogamia ética, o swing e as relações abertas, têm se tornado uma conversa necessária..."

A tela mostrava casais reais, pessoas comuns, falando sobre liberdade, sobre a quebra de tabus e sobre como a introdução de terceiros ou a permissão para novas experiências havia salvado o que parecia perdido.

Riccardo não mudou de canal. Ele largou o controle sobre o edredom e cruzou os braços atrás da cabeça, os olhos fixos na tela.

Paolla, percebendo a mudança na atmosfera, desligou o tablet. O brilho da TV agora era a única fonte de luz, dançando sobre o perfil do marido e refletindo nas paredes claras. Ela se pegou prestando atenção no depoimento de uma mulher francesa na tela: "Não era sobre deixar de amar meu marido. Era sobre expandir o que éramos capazes de sentir."

O ar no quarto mudou. A temperatura parecia ter subido um ou dois graus.

— Curioso... — murmurou Riccardo, quase para si mesmo.

— O quê? — Paolla ajustou-se na poltrona, cruzando as pernas. A seda do robe roçou na pele, um toque que de repente pareceu mais sensível.

— A coragem dessas pessoas — disse ele, virando o rosto para encará-la. Pela primeira vez na noite, ele realmente a via. Não a esposa, a mãe de família, a jornalista. Mas a mulher. — Eles decidiram que a rotina não era o suficiente. Que queriam mais.

Paolla sustentou o olhar dele. O coração dela deu um salto estranho, uma batida fora do ritmo habitual. Ela pensou em Gina, a filha de Riccardo, que vivia a juventude com uma liberdade que Paolla às vezes invejava secretamente. Gina, com seus amigos, suas festas, sua visão de mundo onde as regras eram fluidas. Talvez eles tivessem envelhecido rápido demais dentro daquelas regras rígidas.

— Você acha que funcionaria? — Paolla perguntou, a voz saindo um pouco mais rouca do que planejava. — Ou é apenas fantasia de televisão?

Riccardo sentou-se na cama. O documentário continuava ao fundo, falando sobre regras, ciúmes e prazer.

— Talvez seja fantasia — disse ele, um sorriso enviesado surgindo no canto da boca, um sorriso que ela não via há anos. — Mas, sinceramente, Paolla... a nossa realidade precisa desesperadamente de um pouco de fantasia.

Ele estendeu a mão na direção dela. Não era um convite explícito, mas uma abertura. Uma fenda na armadura da rotina. Paolla levantou-se da poltrona e caminhou até a cama. O som da chuva lá fora parecia ter ficado mais distante. O que importava agora era a pergunta silenciosa que pairava entre os dois, uma porta que acabara de ser destrancada, revelando um corredor escuro, perigoso e excitante.

Naquela noite, eles não apenas dormiram lado a lado. Eles conversaram. E pela primeira vez em muito tempo, o assunto não foi o trabalho, nem as contas, nem o futuro de Gina. O assunto foi o desejo.


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Ficha do conto

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Nome do conto:
Prólogo: O Silêncio de Milão

Codigo do conto:
247691

Categoria:
Fantasias

Data da Publicação:
22/11/2025

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1

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