Sacudi a cabeça. Não era hora de fraquejar. Ele merecia cada segundo.
Dentro da sorveteria, encontrei Mateus e Wellington colocando etiquetas nos potes, reorganizando os freezers e até limpando o balcão com uma agilidade que me surpreendeu.
— Bom dia, patrão! — disse Wellington, erguendo a mão engraxada de sorvete. — Já começamos cedo.
— E aí, Pedro — falou Mateus, sem me encarar direito, mas com um sorriso de canto de boca. — Hoje vai bombar de novo, hein?
— Espero que sim — respondi, tentando me recompor.
Mateus estava com uma camiseta justa demais pra ser coincidência, e o jeito como ele passava o pano nos vidros parecia proposital. Desviei os olhos, concentrando-me nos papéis da administração, embora minha mente insistisse em voltar pro galpão, onde deixei Thales. Será que ele estava bem? Será que alguém tinha ouvido algo?
Meu celular vibrou. Peguei do bolso e desbloqueei.
Era uma mensagem do Flávio.
> "Oi, Pedro! Já voltei de São Paulo… foi corrido, mas deu tudo certo por lá. Estava com saudade! Topa almoçar comigo hoje? Pago eu."
Senti um calorzinho no peito. Flávio sempre tinha esse jeito de quebrar minha dureza com uma simplicidade desarmante.
Respondi na hora:
> "Topo sim. Me diz o lugar e o horário. Vai ser bom te ver."
Guardei o celular no bolso com um leve sorriso. A presença de Flávio era como um cobertor em noite fria — silenciosamente acolhedora.
Respirei fundo, olhando Mateus e Wellington rindo de algo que eu não ouvi.
Hoje o dia ia ser longo, mas pelo menos eu tinha motivos pra continuar firme… mesmo com os fantasmas do galpão assombrando cada pensamento.
O movimento começava a aumentar, e Wellington fazia piadas bobas com Mateus, que fingia não rir. Tentei manter minha atenção no caixa, mas meu estômago já roncava, e minha cabeça ia e voltava pra imagem do Flávio sorrindo na mensagem. Eu queria que o almoço com ele fosse leve, sem culpa, sem interferências.
Mas claro que o destino adora testar minha sanidade.
A porta da sorveteria se abriu com aquele toque do sino e, por instinto, olhei. Meu coração deu um pulo. Arthur. Entrando como se fosse dono do mundo. De regata preta, exibindo os braços absurdamente fortes e bronzeados, com a arma na cintura e aquele olhar de quem sabe que mexe com os outros. O uniforme de policial ele já não usava, mas o crachá pendurado no pescoço deixava claro: Ele também era o delegado da cidade. O homem mais poderoso por aqui.
— Pedro! — ele abriu um sorriso grande, como se fôssemos amigos íntimos. E antes que eu pudesse pensar, já me puxava pra um abraço forte, colando o corpo no meu. — Que bom te ver, cara.
Fiquei sem ar por um segundo. O cheiro dele, o calor, o toque firme. Porra.
Tentei sorrir, desconversar. — E-eu não sabia que você vinha.
— Passei aqui só pra te dar um oi — Ele se afastou, ainda com o sorriso no rosto, mas com os olhos fixos em mim. — E você tá diferente... mais forte, mais seguro. Gostei de ver.
Senti meu rosto esquentar. Não era vergonha. Era raiva de mim mesmo por ainda ser tão vulnerável. Por um momento, quase me perdi no olhar dele. Mas aí pensei em Flávio. No quanto ele sempre foi gentil. No quanto ele merecia que alguém o tratasse bem.
Arthur não. Arthur não merecia nada de mim além da ruína.
“Você não pode se apaixonar por ele, Pedro”, pensei. “Você não vai cometer esse erro. Ele é parte do seu plano, só isso. Um objeto. Um alvo.”
— E aí, que horas você fecha? — Arthur perguntou, casual, apoiando os braços no balcão como quem sabia o efeito que causava. — Tava pensando... a gente podia almoçar juntos. Colocar o papo em dia.
Meu coração disparou, mas respondi rápido, firme:
— Já tenho almoço marcado. Com outra pessoa.
Arthur ergueu uma sobrancelha. O sorriso continuou, mas… havia algo ali. Um leve endurecer na voz, um tremor que não combinava com a pose.
— Ah… tudo bem. Fica pra outra hora, então.
Mas não me enganou. Talvez… talvez fosse ciúmes o que ouvi naquela última frase. Ou talvez fosse só eu querendo que fosse.
O que quer que fosse, Arthur ainda me afetava. Mas eu não ia deixar que isso me enfraquecesse. Ele ia pagar por tudo o que fez. E não importava o quanto aquele abraço tivesse balançado o chão sob meus pés… o que eu sentia agora não era amor.
Era controle. E vingança.
O movimento da sorveteria tinha dado uma trégua, e Mateus assumiu o balcão com Wellington enquanto eu me afastei pra fazer uma ligação. Sentei no banco dos fundos, onde dava pra ouvir só o zumbido do freezer e o bater distante das colheres nos potes. Respirei fundo antes de discar. Fazia tempo que eu não ligava. Mas hoje… eu precisava ouvir uma voz que me lembrasse do que eu realmente era.
O telefone chamou algumas vezes até atender.
— Alô?
— Jaci? Sou eu… Pedro.
Ela demorou um segundo, mas a voz dela veio mais suave do que eu esperava.
— Oi, Pedro… que surpresa. Tá tudo bem?
— Tá sim. Melhor agora. Escuta, eu vou amanhã na clínica de reabilitação… só pra resolver umas burocracias mesmo. Não pretendo conversar com meu pai ,só vou assinar uns papéis e ver se ele tá vivo. Mas… queria saber se você quer ir comigo.
Ela ficou em silêncio por um momento. Depois suspirou:
— Eu vou sim. Clara vai ficar feliz de te ver, se você tiver um tempinho…
— Claro — respondi, com um nó na garganta. — Aliás, eu queria falar com ela agora. Pode?
— Pode sim. Espera aí.
Ouvi passos apressados e uma voz distante chamando:
— Clara! É o Pedro no telefone!
Um chiado, e então…
— Pedro?!
A vozinha dela era a coisa mais doce do mundo. Tinha crescido um pouco, mas ainda guardava aquele tom alegre, sincero, como se cada palavra carregasse cor.
— Ei, minha pequena! Tudo bem com você?
— Tô bem… mas tô com saudade! — ela respondeu sem hesitar.
Senti os olhos arderem.
— Eu também tô. Muito. Prometo que a gente vai se ver logo, tá?
— Promete mesmo?
— Prometo de dedinho — disse, sorrindo. — E aí, como tão as bonecas? Ainda dormem todas juntas na sua cama?
Ela deu uma risadinha gostosa.
— Agora dormem na casinha que eu fiz com uma caixa! Você ia gostar!
A conversa foi curta, mas ficou marcada no meu peito como tatuagem. Quando desliguei, fiquei ali alguns segundos respirando devagar, segurando as lágrimas. Pensar em Clara era lembrar que nem tudo era rancor, vingança ou dor. Existia ainda amor em mim. E eu precisava proteger isso, nem que fosse o último pedaço bom que me restava.
Levantei, ajeitei o cabelo e fui direto ao restaurante onde tinha marcado o almoço com o Flávio. Ele já estava sentado numa mesa perto da janela, sorrindo quando me viu. Usava uma camisa clara e tinha aquele jeito sereno que me desmontava.
— Cheguei — falei, sentando à frente dele.
— Tava ansioso — ele disse, simples, verdadeiro.
E naquele momento, só por um instante, deixei Arthur, Thales, meu pai e até a dor em segundo plano. Porque eu merecia respirar. E Flávio merecia que eu tentasse.
Flávio me olhava de um jeito que deixava claro tudo o que ele queria dizer, mesmo em silêncio. Durante o almoço, entre uma garfada e outra, o pé dele tocava o meu debaixo da mesa, e ele sorria como se aquilo fosse a coisa mais natural do mundo.
— Você tá ainda mais bonito de perto — ele disse, inclinando levemente o corpo sobre a mesa. — E tem esse jeito… que me faz querer saber tudo sobre você, mesmo sabendo que você não se entrega fácil.
— É, eu sou complicado — murmurei, desviando os olhos, mas sorrindo de canto.
— E eu gosto de complicado. Dá mais gosto quando a gente consegue decifrar.
Pigarreei, tentando não parecer afetado, mas meu corpo inteiro parecia em alerta. Era como se a presença dele tivesse tomado o lugar do ar ao meu redor. E quando ele se ofereceu pra me deixar na sorveteria, eu sabia exatamente pra onde aquilo ia.
O carro dele era novo, preto, com bancos de couro e um cheiro de loja que ainda resistia. Assim que entramos, ele ligou o ar-condicionado e subiu os vidros. O som ambiente virou um sussurro abafado.
— Eu queria te beijar desde que a gente se viu hoje cedo — ele disse, virando-se pra mim.
— E o que te impediu?
Ele não respondeu. Só se inclinou e me beijou. Forte, quente, sem espaço pra dúvida.
A coisa foi rápida e inevitável. Os corpos colados, minhas mãos nos cabelos dele, a dele puxando minha camisa, o banco reclinando. A respiração ficando pesada, a roupa sendo arrancada com urgência. Os vidros embaçaram logo. Lá fora, o mundo seguia. Aqui dentro, era só desejo, suor e aquele calor que parecia explodir de dentro da gente.
Quando terminou, ficamos alguns minutos ali, ofegantes. Ele me encarou com aquele mesmo olhar calmo e doce de sempre.
— Isso aqui... podia virar rotina, sabia?
— Vamos com calma, Flávio — respondi, ainda com a respiração descompassada. — Não quero te prometer nada que eu não tenha certeza se posso cumprir.
Ele assentiu, compreensivo como sempre.
Voltamos pra sorveteria e, quando estacionamos, Wellington estava saindo, se despedindo com um aceno. Camila chegava, colocando o uniforme ainda meio desajeitada, mas com aquele sorriso animado que ela sempre carregava.
— Boa tarde, chefe! — ela disse, ajeitando o avental.
— Boa tarde, Camila — respondi, entrando logo atrás dela.
Mateus estava atrás do balcão, mas parecia... diferente. Mexia nos potes com mais força do que o necessário, e não me olhou de cara. Caminhei até ele, encostando de leve no balcão.
— Tá tudo certo aí?
Ele parou, respirou fundo e me encarou, meio hesitante.
— Tô… só pensando em umas coisas.
— Que tipo de coisas?
Ele desviou os olhos, como se não soubesse se podia ou devia dizer. E nesse momento, eu soube: alguma coisa estava mexendo com ele.
E, por mais que meu corpo ainda estivesse marcado por Flávio, minha cabeça... já começava a se perguntar o que se passava dentro do Mateus.
Aquele silêncio dele me incomodava, mas antes que eu pudesse insistir de novo, meu celular vibrou.
Era uma mensagem do Arthur:
" Pedro, fiquei sabendo que o Felipe já tá em casa. Tá bem melhor pelo que me falaram. Queria ir lá fazer umas perguntas a ele, mas tô preso aqui na delegacia! Se você for lá, por favor me passe o que ele falou! Xero".
O coração apertou. Fazia semanas que Felipe estava no hospital, desde aquele dia que invadiram a casa dele e quase o mataram.
— Camila, Mateus — chamei, guardando o celular. — Preciso sair um pouco. Vou deixar a sorveteria com vocês agora à tarde.
Camila assentiu com um sorriso doce.
— Pode ir tranquilo, chefe. A gente segura as pontas.
Mateus só assentiu com a cabeça, ainda evitando me encarar. Eu ainda ia arrancar essa história dele.
Fui direto pra casa do Felipe. O bairro era mais afastado, tranquilo, com árvores altas balançando ao vento e um silêncio que fazia cada passo meu ecoar mais fundo. Quando ele abriu a porta, fiquei paralisado por um segundo. Ele estava mais magro, os olhos fundos, mas vivos.
— Pedro…
— Tô aqui — falei, entrando e abraçando ele com cuidado. — Que bom te ver assim… de pé.
— Achei que ia virar estatística — ele tentou brincar, mas o cansaço era evidente.
Nos sentamos na sala, e ele me ofereceu um chá que provavelmente não ia beber. O silêncio entre nós não era incômodo. Era aquele tipo que vem depois de uma batalha, quando os sobreviventes só querem respirar juntos.
— Sabia que o Mateus foi me visitar no hospital? — ele comentou, olhando pro nada.
— O quê? — franzi a testa. — Ele não me disse nada.
— Pois é. Foi discreto, ficou pouco tempo, mas disse algo estranho… que alguém tinha tentado atirar nele também, pouco tempo depois do que aconteceu comigo.
Fiquei em silêncio por um momento, absorvendo aquilo.
— Ele disse mais alguma coisa?
— Disse que achava que tinha uma ligação entre o que aconteceu comigo e com ele. Mas parecia assustado. Evitou falar demais.
O mundo ao meu redor ficou um pouco mais frio. Quem estava atrás do Felipe… podia estar mirando outras pessoas agora. Talvez até Mateus. Talvez até eu.
— Pedro… você acha que tem algo maior por trás disso? — ele perguntou, a voz baixa, sincera.
Olhei nos olhos dele, e a resposta veio seca:
— Eu tenho certeza. E eu vou descobrir. Nem que seja a última coisa que eu faça.
Enquanto conversava com Felipe, a mente fervia. O que ele disse sobre Mateus quase ter sido baleado, sobre alguém estar por trás disso tudo… mexeu comigo de um jeito que eu não conseguia esconder. Se estavam rondando o Mateus e o Felipe, eu podia ser o próximo. E do jeito que as coisas estavam caminhando, não dava mais pra brincar de confiar em sorte.
Eu precisava contratar gente de verdade. Gente barra pesada, que soubesse lidar com ameaça, com arma, com qualquer sombra que se aproximasse de mim com intenção errada. Não dava pra deixar minha vida — e a minha vingança — na mão do acaso.
— Eu vou embora dessa cidade, Pedro — a voz do Felipe me arrancou dos pensamentos.
— O quê?
— Tô falando sério. Eu não vou esperar alguém terminar o que começaram. Já fui avisado duas vezes, e na terceira… vai ser caixão. Essa cidade virou um campo minado.
— Felipe…
— Não tenta me convencer a ficar. Só vim pra casa porque precisava respirar fora do hospital, mas já tô com passagem marcada pra semana que vem. Se eu sumir, talvez eles me esqueçam.
Assenti em silêncio, engolindo o peso daquela decisão. Parte de mim queria que ele ficasse, mas outra parte entendia. O jogo que eu tava jogando era perigoso, e nem todo mundo nasceu pra isso.
Mas eu sim. E se alguém achava que ia me parar fácil, ia precisar tentar bem mais forte.
Saí da casa do Felipe com o estômago embrulhado e a cabeça girando. A decisão dele de ir embora me golpeou mais do que eu imaginava. Era como se tudo estivesse fugindo do controle!
Montei na moto e coloquei o capacete devagar, sentindo o motor vibrar sob mim. Se eu quisesse seguir adiante, tinha que fechar os ciclos abertos. E tinha um que ardia como uma ferida infeccionada: Thales.
Aquela história não podia ficar em suspenso. Eu não era mais o garotinho acuado da escola, aquele que eles empurravam nos corredores, chamavam de aberração e riam enquanto eu sangrava por dentro. Agora, era diferente. Eu tinha o poder. E poder, quando não é usado, vira fraqueza.
Dirigi até o galpão, cortando o vento, o motor da moto rugindo enquanto minha mente se concentrava no que eu tinha que fazer. O céu estava cinza, como se até o tempo soubesse que algo estava prestes a acabar.
Quando cheguei ao galpão, o lugar estava silencioso, quase como uma caverna escura, esperando pelo fim. Entrei pela porta lateral e caminhei até a sala onde Thales estava preso, amarrado, sem poder se mexer. Ele estava sujo, abatido, mas ainda com aquele olhar arrogante. Pelo menos por um instante. Logo ele notou minha presença e a expressão se transformou em uma mistura de medo e fúria.
— Finalmente veio me soltar? — perguntou, tentando disfarçar o tremor na voz, assim que tirei a mordaça da sua boca!
Eu dei uma risada seca, sem nenhum traço de compaixão.
— Não. Vim encerrar uma fase.
Ele tentou falar mais alguma coisa, mas eu o interrompi, caminhando ao redor dele, sentindo o cheiro pesado de sujeira e desespero no ar. A sala estava toda empoeirada, as paredes mofadas, e o ambiente carregava o peso de todas as suas mentiras e ameaças.
Sem mais palavras, fui até a prateleira de combustível, que já estava preparada, como um último toque na minha estratégia. Peguei a lata de gasolina e comecei a espalhar o líquido pelo chão e pelas paredes. Cada gota parecia uma sentença de morte, cada respingo uma promessa cumprida.
Thales começou a perceber o que estava acontecendo. Seu tom mudou, e ele suplicou, desesperado:
— Você... você não vai fazer isso! Por favor, Pedro! Não!
Mas não havia volta. A gasolina já estava em todo o lugar, envolvendo as paredes, o chão e até ele. Aquele pedido de ajuda não passava de uma tentativa de sobrevivência — mas eu não estava ali para salvar ninguém.
Me aproximei dele e, com uma calma perturbadora, tirei a mordaça da sua boca. Olhei nos seus olhos, e, por um momento, a raiva que eu carregava na alma transbordou, como uma torrente prestes a engolir tudo.
— Eu não queria ser um assassino, Thales — disse com a voz baixa, mas firme. — Não sou isso. Mas você... você fez de mim uma pessoa ruim. Depois de tudo o que fizeste, todas as agressões que sofri na adolescência, você me forçou a mudar. Não fiz isso por prazer. Fiz porque você me empurrou até aqui.
Ele olhou para mim, os olhos agora vidrados, provavelmente reconhecendo o peso das palavras. Mas já era tarde demais para arrependimentos. Não havia mais tempo para conversas ou piedade.
Tirei o isqueiro do bolso e, com um movimento rápido, o acendi. O som da chama se iniciando foi como música nos meus ouvidos. Joguei a chama na gasolina espalhada, e logo o fogo começou a se espalhar, consumindo tudo ao seu redor. O calor, a fumaça, o som das chamas... era como se o próprio galpão estivesse desmoronando ao meu redor, junto com o peso de tudo o que Thales representava.
Eu estava ali, em pé, olhando para Thales, e algo dentro de mim simplesmente quebrou. O calor do fogo ao meu redor, o cheiro de gasolina queimando, a fumaça que se espalhava... Nada disso fazia sentido. Nada disso estava mais no controle. Eu não estava mais no controle.
Eu apertei os dentes com força, e a raiva que eu vinha segurando explodiu em palavras, como se a boca tivesse ficado cheia de veneno. Não consegui mais segurar. A raiva que eu sentia não se tratava só dele. Se tratava de tudo o que ele me fez ser. De tudo o que ele fez com a minha vida.
— Você me fez me odiar, Thales! — gritei, minha voz rouca, distorcida pela fúria. — Você me fez me perguntar se eu realmente queria viver!
Eu estava delirando. Estava surtando. O caos dentro de mim parecia ter ganhado vida própria e me devorava. Minha respiração estava pesada, o peito arfando, e meus punhos estavam tão fechados que as unhas estavam cravadas nas palmas.
— Você, seus amiguinhos, seus filhos da... — Eu não conseguia mais formar palavras. Só pensamentos tortuosos, uma dor imensa, um lamento constante. — Por causa de vocês eu tive que ir embora da cidade! Tive que ir comer lixo em São Paulo! Com a merda daquilo tudo! Eu fiquei jogado na rua, sem saber o que fazer, sem esperança, porque VOCÊS fizeram isso comigo!
O som da minha voz era como um eco de loucura, e o que mais me fazia perder o controle era ver aquele sorriso sujo ainda estampado no rosto dele. Ele estava ali, amarrado, indefeso, mas de alguma forma ainda se achando superior. Aquele olhar... aquele olhar de quem ainda achava que estava no controle.
Eu não aguentei mais. Não podia. O que ele me fez, o que ele me obrigou a ser... eu não queria mais sentir isso. A dor era tão intensa que eu não sabia mais onde começava e onde terminava. Eu só queria apagar tudo aquilo.
Com um grito gutural, avancei sobre ele e estapeei sua cara com toda a força que eu tinha. O som do impacto foi como uma explosão na minha mente. Eu não queria parar. Cada tapa era uma tentativa de apagar o que ele tinha feito comigo. Cada golpe era uma tentativa de finalmente me libertar.
— Vocês fizeram de mim um monstro! Vocês me QUEBRARAM!— eu gritava, sem conseguir parar. Eu sabia que ele estava implorando, mas não queria ouvir. Não queria mais ouvir as desculpas dele, os pedidos de perdão. Não queria mais ser a vítima.
Ele implorava, mas eu não podia mais ouvir. A raiva tomava conta de mim, e a dor parecia se expandir até que tudo se misturasse em um turbilhão. Eu só queria... acabar com tudo isso.
Quando finalmente me afastei, o fogo atrás de mim estourava em uma explosão surda. O som daquilo tudo parecia um grito de liberdade. Mas a liberdade não vinha de um lugar bonito. Não vinha de um lugar limpo. Ela vinha de um caos que eu tinha criado dentro de mim.
Eu estava perdido. Mas, ao mesmo tempo, algo dentro de mim também estava fechado para sempre. E esse ciclo estava terminado.
Thales gritava, se contorcia, tentando escapar das chamas que se aproximavam dele. Mas não tinha mais escapatória. O fogo já dominava a sala, as chamas engolindo tudo em seu caminho.
Eu saí do galpão com o som das sirenes dos bombeiros crescendo atrás de mim. Mas eu não parei. O calor do fogo me acompanhava, e a sensação de liberdade era intensa. A cidade começava a desabar atrás de mim, e tudo o que eu queria era seguir em frente.
Montado na moto, acelerei o máximo possível. O vento batia no meu rosto enquanto eu pensava, sem remorso:
“Xeque-mate, Thales.”
Eu não era mais aquele garotinho assustado da escola. Eu tinha controle agora. E não havia mais ninguém que fosse capaz de me parar.
Continua...
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