Ela estava linda. Vestia um vestido preto simples, sem grandes decotes, mas justo o suficiente para delinear a curva delicada da sua cintura. Os cabelos castanhos escuros caíam lisos sobre os ombros, arrumados com um capricho que talvez só ela soubesse o quanto tinha sido trabalhoso. A maquiagem discreta acentuava seus olhos castanhos, que agora olhavam para o salão, mas sem realmente enxergar.
Ela era casada. Há dois anos oficializara uma relação de mais de uma década. Um relacionamento correto, previsível, funcional. Mariana era o tipo de mulher que fazia tudo certo, que tinha aprendido, com o tempo, a não esperar demais. Gostava de carinho, de romantismo, de palavras ditas no ouvido fora das obrigações cotidianas, mas seu marido tinha outras prioridades. Não era ruim. Apenas… era aquilo. E ela não queria mais brigar por atenção. Não mais.
Foi no meio desse vazio confortável que ela o viu.
Carlos.
Não sabia muito sobre ele, só o básico: trabalhavam na mesma empresa, departamentos diferentes, poucas interações além de e-mails e reuniões formais. Ele era o tipo de homem que passava despercebido por quem estivesse distraído demais com seus próprios problemas. Moreno claro, cabelo curto e levemente bagunçado como quem não queria perder tempo demais com espelhos. Tinha um porte físico bonito, não musculoso demais, mas firme, atlético, como quem se cuida sem fazer disso um espetáculo. O que chamava atenção, no entanto, era o jeito como ele olhava.
Não era um olhar invasivo. Não era lascivo. Era atento. Quando ele olhou para Mariana, não foi como um homem olha para um pedaço de carne — foi como quem enxerga uma pessoa inteira. Ela percebeu. E aquilo a desmontou por dentro de um jeito estranho.
Ele não estava acompanhado. Conversava com algumas pessoas da equipe dele, educado, discreto. Quando percebeu que Mariana o observava, não desviou os olhos. Sustentou o olhar com um leve sorriso no canto da boca, como quem diz “estou te vendo”, mas sem arrogância.
Mariana desviou, rápida, envergonhada por ter sido flagrada, mas não conseguiu evitar de olhar de novo, segundos depois.
E lá estava ele. Olhando de volta. Sorrindo de leve, de novo.
Ela sentiu o estômago revirar.
Não era desejo ainda. Era outra coisa. Era aquela lembrança incômoda de quem, há muito tempo, não era olhada daquele jeito.
Sem perceber, ela passou a língua pelos lábios, nervosa. Olhou para a própria taça e bebeu mais um gole.
Minutos depois, ele se aproximou.
— Não gosta muito de festas? — perguntou ele, com uma naturalidade desconcertante, parando ao lado dela sem invadir seu espaço.
Mariana demorou um segundo para responder, organizando seus pensamentos que insistiam em querer fugir para outras direções.
— Eu… Não sei. Depende da festa. Essa aqui não é das piores, mas… — ela deu de ombros e sorriu, simpática, sem compromisso.
Ele assentiu devagar.
— Concordo. Acho que a comida salva. — E sorriu.
Ela sorriu de volta. Por educação, disse a si mesma. Mas sentiu o calor subir pela pele. Havia uma leveza naquele papo, diferente das conversas automáticas que costumava ter no cotidiano.
— Mariana, certo? — ele perguntou.
Ela ergueu as sobrancelhas, surpresa por ele saber seu nome.
— Isso. E você é Carlos, né?
Ele assentiu, encostando o ombro de leve na parede ao lado, relaxado.
— Fico feliz de ter acertado. — Ele falou aquilo como se estivesse realmente satisfeito com o simples fato de lembrar o nome dela. — A gente se cruza de vez em quando nos corredores. Acho que nunca conversamos de verdade.
“Não mesmo”, pensou Mariana. E por algum motivo isso agora parecia uma falha grave da vida.
O papo continuou, leve, solto. Começaram falando de trabalho, como quem cumpre um protocolo, mas logo escorregaram para assuntos mais pessoais: viagens, hobbies, pequenas histórias engraçadas. Carlos tinha uma forma delicada de fazer perguntas, demonstrando um interesse genuíno pelo que ela dizia. Nada nele parecia forçado. Quando ria das histórias dela, era de verdade. Quando a olhava nos olhos enquanto ela falava, não era um gesto aprendido para seduzir. Era apenas… presença. Algo raro.
A certa altura, Mariana percebeu que estava contando coisas que normalmente não contava para quase ninguém. Pequenos detalhes, frustrações bobas, gostos escondidos.
E ele ouvia. Com atenção. Como quem descobre um livro raro e resolve folhear devagar.
Foi então que o assunto escorregou para o tema mais delicado: relacionamentos.
Não foi ele quem puxou. Foi ela. Talvez pelo vinho, talvez pela necessidade silenciosa de ser vista de verdade por alguém.
— Eu sou casada. — disse de repente, quase como quem pede desculpas.
Ele não mudou a expressão. Continuou ali, ouvindo, calmo.
— Há quanto tempo? — perguntou, sem julgamento.
— Dois anos casada oficialmente. Mas estamos juntos há… uns doze.
Ele assentiu devagar, olhando para a taça que segurava.
— Isso é muito tempo. — disse apenas.
Mariana mordeu o lábio, pensativa.
— É. É bastante.
Carlos olhou para ela outra vez, com suavidade nos olhos.
— E vocês são felizes?
A pergunta caiu como um sussurro íntimo entre os dois. Mariana sentiu o coração disparar. Não esperava aquilo. Não daquele jeito. Não com aquela sinceridade que não era acusação, nem cantada. Era apenas… genuína curiosidade.
Ela demorou um pouco para responder.
— A gente funciona. — disse enfim. — É um casamento funcional.
Carlos não respondeu de imediato. Apenas olhou para ela, entendendo tudo o que havia por trás daquela resposta curta.
Foi naquele momento que Mariana percebeu que havia um mundo inteiro de sensações guardadas dentro dela. Desejos adormecidos. Vontades sufocadas pela rotina, pelo medo de mexer no que já parecia resolvido. E aquele desconhecido ali, parado ao seu lado, parecia perceber isso tudo com um simples olhar.
Ela desviou os olhos, constrangida, e riu de si mesma.
— Desculpa. Não sei por que tô falando essas coisas. — tentou desviar.
— Não precisa se desculpar. — ele disse, com um sorriso breve. — Às vezes a gente precisa falar com quem não tem nada a ver com a nossa história. Fica mais fácil.
Ela sorriu. Sabia que ele tinha razão.
Mais tarde, quando as conversas se misturaram e eles foram interrompidos por outros colegas da empresa, Mariana se viu pensando nele o tempo todo. Não porque ele tivesse sido sedutor demais. Não porque estivesse se insinuando. Mas porque, pela primeira vez em muito tempo, alguém a olhou como uma mulher inteira — não só como esposa, profissional, funcionária. Uma mulher inteira, cheia de vontades esquecidas.
Horas depois, em casa, deitada na cama ao lado do marido adormecido, os pensamentos voltaram para Carlos. Para o jeito como ele a ouvira. Para o jeito como olhava para a boca dela quando ela falava. Para o cuidado ao não ultrapassar limite nenhum, mesmo deixando claro — com os olhos — que havia desejo ali.
Foi então que ela se lembrou do presente que comprara para si mesma meses antes e nunca tivera coragem de usar: um cinto vermelho, delicado, de couro macio, ajustável, escondido no fundo de uma gaveta, embrulhado ainda na embalagem discreta da loja online.
Ela sorriu sozinha. O marido nunca demonstrara interesse naquilo. Ela mesma quase esquecera. Mas agora, a lembrança do acessório ganhava um novo brilho em sua mente.
Não era pelo objeto em si.
Era pelo que aquilo representava: o desejo não vivido. A liberdade não explorada. A Mariana esquecida atrás dos papéis, dos boletos, das rotinas. Aquela mulher que agora, estranhamente, começava a despertar outra vez.
Tudo por causa de um olhar sustentado por alguns segundos a mais do que o esperado.
Na semana seguinte, ela saberia que aquele encontro tinha sido apenas o começo.
E o cinto… deixaria de ser apenas um embrulho esquecido.