Entre Deus e o Prazer - Prólogo



A Filha da Verdade

    “Antes de ser mulher, eu fui doutrinada.
    Antes de conhecer o prazer, eu conheci o medo.”

Meu nome é Raquel. Tenho trinta anos.
E durante muito tempo, minha vida coube dentro de um Salão do Reino das Testemunhas de Jeová.

Nasci num lar de Testemunhas de Jeová, em um bairro modesto do interior. Meus pais eram como todos os outros daquela congregação: humildes, disciplinados, trabalhadores. Não bebiam, não mentiam, não dançavam, não celebravam aniversários — e não questionavam nada.

Fui criada entre textos bíblicos e reuniões semanais. Aos 8 anos, eu já recitava versículos de cor. Aos 10, já me diziam que meu corpo era um templo — mas ninguém me explicava o que existia dentro dele. Aos 11, quando minha menstruação desceu pela primeira vez, minha mãe apenas me deu um pacote de absorventes e disse que agora eu era “uma mulher diante de Jeová”. Mas eu não me sentia mulher. Só me sentia assustada.

A adolescência foi um silêncio comprido. As meninas da escola falavam de crushes, de beijos roubados, de toques proibidos nos corredores. Eu ouvia tudo com o rosto quieto e o coração acelerado. Em casa, porém, não podia comentar nada. Sentir desejo era pecado. Se tocar, era impureza. Se apaixonar por alguém de fora da religião era “prostituir-se com o mundo”.

Então eu calei minha carne. Me tornei obediente. Exemplar. Uma jovem que chegava cedo no Salão, que comentava durante as reuniões, que ia de casa em casa com as revistas A Sentinela debaixo do braço.

Mas dentro de mim, algo sempre se mexia.

Era como uma semente enterrada em solo seco.
Uma vontade silenciosa, que nem nome tinha, mas que às vezes me fazia demorar no banho, observando meu corpo crescer. Me fazia olhar com estranheza o quadril que alargava, os seios que se desenhavam, o calor estranho entre as coxas que surgia à noite, sem aviso, e me deixava acordada, confusa, culpada.

Mas o mundo ao meu redor dizia: repreenda os pensamentos.
E eu reprimia. Todos. Um por um.

Aos 18 anos, fui batizada, como era esperado. Fiz meu voto.
Não sabia ainda o peso que aquilo teria.
Ser batizada não era apenas afirmar fé em Deus.
Era assinar um contrato com a culpa.

E por mais que eu quisesse agradar meus pais, minha congregação, minha consciência… eu já sentia: eu não nasci pra ser santa.
Só não tinha coragem de admitir.

Foi entre os 18 e os 20 que comecei a viver meu primeiro dilema. A maioria das moças da congregação já estava noiva ou “em oração” pra casar. E eu… eu apenas orava pra entender por que meu coração batia forte por homens que nem eram da igreja — e por que às vezes batia forte por mulheres também.

Mas eu não contava isso pra ninguém.
Nem mesmo pra mim.

    "Ser pura era minha obrigação. Mas ser livre era meu instinto.
    E instinto, por mais que a gente esconda, uma hora dá um jeito de sair.”

Aos 20 anos, eu já era uma moça feita.
Cabelo sempre preso, saia abaixo do joelho, postura recatada.
Mas por dentro, minha carne era pura efervescência.

Era nessa idade que começavam as pressões.
“O fulano está interessado em você.”
“Já pensou em formar um lar cristão?”
“Uma mulher de Deus precisa estar sob a liderança de um bom servo.”
“Você já está na idade.”

E eu, que ainda sonhava com viagens, com ler livros que não fossem da Torre de Vigia, comecei a pensar: e se casar for a única forma de me libertar sem parecer rebelde?

Foi assim que conheci o Daniel.
Filho de ancião, pontual, educado, estudioso da Bíblia — e absolutamente sem sal.
Mas ele era aprovado. E era solteiro. E eu estava com 23 anos e cansada de esperar por um milagre.

Nosso namoro foi como manda o figurino: acompanhado, supervisionado, sem toques, sem beijos. Uma conversa aqui, um sorriso ali, uma caminhada ao pôr do sol com dois metros de distância e olhares castos que por dentro, pra mim, já se misturavam com cenas que eu fingia não pensar.

    “Ele não me dava tesão. Mas me dava sossego.
    E naquela época, sossego parecia ser o bastante.”

Ficamos noivos em menos de um ano.
Me casei aos 25.
Virgem, tensa, com um vestido alugado, um sorriso programado, e a sensação de que eu estava prestes a cumprir meu papel — mesmo sem saber se esse papel era meu mesmo.

Naquela noite de núpcias, eu me despi pela primeira vez diante de um homem. E não senti nada. Nem medo. Nem desejo. Nem repulsa. Apenas… vazio.

Daniel não era bruto, nem rude. Apenas... inexperiente.
Me beijou como quem ora. Me tocou como quem lê um manual.
E me penetrou como quem cumpre um dever.

Eu não gozei. Nem naquela noite. Nem nas muitas outras que vieram.
Mas também não reclamei. Como boa esposa cristã, eu apenas abria as pernas e fechava a alma.

    “Achei que com o tempo, tudo melhoraria.
    Mas o tempo, pra quem finge que ama, só piora o fingimento.”

Dos 25 aos 29, fomos um casal modelo.
Íamos às reuniões, sorriamos nas fotos, ele fazia comentários edificantes e eu fazia bolos pra partilhar com as irmãs.

Mas por dentro…
Eu estava murchando.

Nunca traí, nunca gritei, nunca quebrei um mandamento.
Mas meu coração já não dobrava os joelhos.
E minha vagina…
Minha vagina dormia como um campo seco em época de estiagem.

    E foi nesse solo rachado que, sem perceber, uma vontade antiga voltou a brotar.
    Um desejo morno, mas teimoso.
    Uma sede de liberdade que nem a Bíblia, nem Daniel, nem minha fé conseguiam mais conter.


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Ficha do conto

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Nome do conto:
Entre Deus e o Prazer - Prólogo

Codigo do conto:
238173

Categoria:
Confissão

Data da Publicação:
13/07/2025

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10

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