Entre Deus e o Prazer - Capítulo 2 – O Exílio de Mim Mesma



    “Separar-se de alguém é fácil. Difícil mesmo é separar-se daquilo que você achava que era.”

Acordei no dia seguinte à separação com o mesmo sol entrando pela janela, mas era como se ele não brilhasse mais pra mim.

As malas estavam feitas. Poucas roupas, uma caixa com livros, meus documentos, a Bíblia…e uma pasta com todas as economias que eu consegui guardar em quatro anos de casamento. Era pouco. Mas era tudo que eu tinha. Mais do que bens — era a chance de recomeçar.

Deixei a chave sobre a mesa da cozinha. Saí sem olhar pra trás.

Daniel não estava em casa. Talvez propositalmente. Talvez porque ele também soubesse que, uma vez cruzada aquela porta, eu não voltaria mais.

    “A casa que foi meu ninho virou jaula. E eu, ave em silêncio, fui embora com as asas feridas, mas ainda minhas.”

Novo CEP, novo silêncio

Não queria ficar na mesma cidade. Tudo ali me lembrava de algo: da congregação, do casamento, da Raquel que eu não queria mais ser.

Peguei um ônibus para uma outra cidade de a três horas dali. Cheguei no fim da tarde, com a mochila nas costas e o coração encolhido. Fui direto para uma pensão simples, dessas onde o lençol já vem marcado por outras histórias.

No dia seguinte, comecei a busca. Apartamento barato. De preferência pequeno. De preferência sem muitas perguntas.

Achei um kitnet numa rua modesta, mas segura. Paguei o primeiro aluguel, o depósito… e quando fechei a porta pela primeira vez, chorei.

Chorei como quem assina o atestado da própria solidão. Mas também como quem planta, ali, a primeira semente de liberdade.

Adeus à Congregação

O segundo passo foi deixar a fé institucionalizada. Fé, eu ainda tinha — ou achava que tinha. Mas não daquele tipo engessado, que mede santidade por comprimento de saia ou ausência de tatuagem. Liguei para a supervisora da congregação, agradeci por tudo, e pedi desligamento. Foi frio. Sem drama. Sem súplica.

    “O Deus que eu conhecia estava preso no Salão do Reino das Testemunhas de Jeová. Eu queria conhecer o que existia do lado de fora daquela porta de vidro.”

Voltar a ser útil

O dinheiro que eu tinha cobria uns três meses de despesas, no máximo. Eram os trocados da minha antiga vida. Mas eu tinha algo mais valioso: experiência. Antes do casamento, eu já havia trabalhado como recepcionista em dois consultórios médicos. Não demorei a montar um currículo simples e bater de porta em porta. Depois de duas semanas, fui chamada para uma entrevista numa clínica dermatológica. Uniforme branco, jornada de oito horas, salário mínimo, mas sem descontos pesados. Aceitei na hora. Era pouco. Mas era meu. Era eu.

Fui ajeitando a rotina: Mercado no sábado de manhã, lavanderia na terça, dízimo agora era economia — e não mais contribuição. Morava sozinha. Comia sozinha. Dormia sozinha. E, nos primeiros meses, isso foi o bastante. Sobrevivendo dignamente

A clínica era movimentada. Gente bonita. Médicos sorridentes. Pacientes perfumados. Mas eu continuava ali, só observando, sem me permitir ser vista. A solidão me deu tempo para pensar. Pensar demais.

Eu trabalhava muito, ganhava pouco, e guardava o que podia. Deixava de comprar perfume pra conseguir juntar um dinheirinho no fim do mês. Não era miséria. Mas era contenção.

    “A liberdade tem um preço. E o meu estava sendo pago em boletos, horas extras e jantares requentados.”

Mas aos poucos, fui criando raízes na nova cidade. Sabia o nome da vizinha da frente. Aprendi a pegar o ônibus certo. Comprei uma cortina bonita pro banheiro. E uma blusa decotada que usei sozinha dentro de casa, só pra me lembrar que eu era mulher. Não fazia planos. Só tentava existir com um pouco mais de dignidade a cada dia.


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Ficha do conto

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Nome do conto:
Entre Deus e o Prazer - Capítulo 2 – O Exílio de Mim Mesma

Codigo do conto:
238608

Categoria:
Confissão

Data da Publicação:
20/07/2025

Quant.de Votos:
2

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