Entre Deus e o Prazer - Capítulo 1 – A Quarentena do Amor



    “A pandemia calou o mundo.
    E no silêncio das ruas, eu finalmente ouvi a minha própria voz.”

2020 chegou sem aviso. Como quase todas as tragédias, ele não veio gritando. Veio sorrateiro. No começo era apenas uma notícia distante. Um vírus na China. Depois, um caso aqui, outro ali… até que o mundo inteiro parou. E com ele, parou também o meu casamento.

Daniel e eu sempre fomos um casal de rotina. Acordávamos cedo, fazíamos o culto matinal, tomávamos café juntos. Ele ia trabalhar, eu cuidava da casa e das atividades da congregação. À noite, estudávamos alguma publicação da Torre de Vigia e comentávamos os textos do dia.

Era uma vida simples. E suportável. Porque tinha espaço. Tinha silêncio. Tinha distrações. Mas com o lockdown, tudo se apertou.

O tempo, que antes escapava pelas brechas da rotina, agora ficava estagnado entre quatro paredes. Não havia mais cultos presenciais, nem reuniões, nem campo. Não havia mais desculpas para evitar o que já estava evidente: nós não nos amávamos.

    “A pandemia não foi a causa da nossa separação.
    Foi apenas a lupa que ampliou tudo o que já estava quebrado.”

Os dias se tornaram longos e silenciosos. Não havia conversas. Só avisos. Não havia carícias. Só toques protocolares. E o sexo… o sexo, que já era escasso, se tornou inexistente.

Daniel estava sempre cansado. Irritado. Distraído com as notícias, com os gráficos de mortes, com o pânico do fim dos tempos. Eu, por outro lado, sentia uma inquietação que não sabia nomear. Era como se meu corpo estivesse acordando de um sono profundo — e começasse a cobrar tudo o que nunca teve.

    “Enquanto o mundo temia morrer, eu comecei a desejar viver.”

Houve uma noite, em junho, em que tentei me aproximar dele. A pandemia já durava três meses. Eu estava com a alma em carne viva, precisando de toque, de calor, de qualquer sinal de humanidade. Sentei ao lado dele na cama, toquei sua mão, encostei meu rosto em seu ombro. Ele se afastou como se eu estivesse infectada.

— “Não é hora pra isso, Raquel…” — ele disse, sem me olhar.

E naquela frase, eu ouvi tudo o que nosso casamento havia se tornado: uma conveniência sem desejo, uma aliança sem afeto, uma fé sem prazer.

Chorei sozinha no banheiro, com a escova de dentes na mão e um nó na garganta. Chorei pelo tempo perdido. Pela virgindade doada a um homem que nunca me enxergou como mulher. Pela jovem que eu fui, que esperou que o amor viesse da obediência. E pela mulher que eu era agora, trancada em casa com um marido que me ignorava.

    “Naquele dia, me olhei no espelho com olhos de viúva.
    Não uma viúva de corpo. Mas de presença. De sentido. De alma.”

A separação não veio de uma briga. Veio do esvaziamento. Um dia, eu acordei e percebi que não sentia mais dor. Nem tristeza. Apenas um profundo cansaço de ser invisível.

Conversei com ele calmamente. Disse que precisava de um tempo. Ele não protestou. Nem implorou. Apenas assentiu, como quem aceita a previsão de chuva numa manhã nublada.

Em poucos dias, arrumei minhas coisas e fui embora. Sem cerimônia. Sem gritos. Sem aliança no dedo.

Foi assim que, aos 29 anos, em plena pandemia, deixei de ser esposa. E comecei a ser… outra coisa. Algo novo. Algo que nem eu sabia ainda o que seria.

Mas, dentro de mim, algo já vibrava.

    “Era o silêncio que antecede o primeiro gemido.
    A pausa antes da explosão.
    A fresta por onde o prazer começava, enfim, a entrar.”


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Ficha do conto

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raqueltj

Nome do conto:
Entre Deus e o Prazer - Capítulo 1 – A Quarentena do Amor

Codigo do conto:
238358

Categoria:
Confissão

Data da Publicação:
15/07/2025

Quant.de Votos:
6

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