De volta ao 3B-12 e conhecendo as novas moradoras

O apartamento 1204 tinha virado uma prisão dourada.
Eu, a Puta Gorda Chefe, tinha tudo: o amor da Cami, a adoração da Amanda, o respeito (e o medo) da Dona Maria. O Reitor estava em silêncio. A Daniella tinha virado a nossa submissa de luxo. Mas... estava chato. O luxo era silencioso. O mármore era frio. O chão não tinha sujeira de verdade para lamber.
"Cami," eu disse numa terça à tarde, enquanto ela passava cera na rola do "Negão". "Eu tô com saudade da sujeira."
"Do quê, Bia?"
"Do 3B-12," eu confessei. "Daquele cheiro de mofo e Corote. Do colchão que rangia. Do medo de ser pega pela Dona Maria."
Nós rimos. Tínhamos parado de pagar o aluguel do 3B-12 há alguns meses, mas nunca tínhamos devolvido a chave. Por quê? Porque éramos putas. E putas não devolvem chaves de porões secretos.
"O que a gente tá fazendo?" Cami perguntou, se levantando.
"A gente vai matar a saudade. Se tiver gente lá, a gente se desculpa. Se não tiver, a gente fode na cama da infância."
O 1204 fedia a perfume caro e sexo limpo. O corredor do 3B-12 fedia a cigarro e comida azeda. A diferença era um tapa na cara.
Eu bati. TOC. TOC. Duas vezes. Uma batida educada, de quem não mora mais ali, mas tem boas maneiras.
Ninguém respondeu.
Então eu voltei a bater TOC TOC, “ninguém ?” perguntei.
"Viu?" Cami sussurrou, a mão dela na chave. "Vamos abrir."
Eu estava prestes a girar a chave quando o ferrolho interno se moveu.
A porta abriu.
E nós ficamos paralisadas.
Lá estava ela. A nova moradora.
Ela era o oposto do sol do 1204. Ela era a sombra.
Com a pele de um branco doentio, quase azulada, como se não visse o sol há anos. Cabelos pretos, longos, pesados, que emolduravam um rosto com olhos pesados de delineador preto. Batom preto. Camiseta de alguma banda de rock nórdico que parecia ter vindo de um cemitério. Ela era bonita, de um jeito sombrio. Ela parecia a porra da Wandinha Addams com piercing.
"Pois não?" a voz dela era baixa, seca, sem inflexão.
Até a Cami, a minha sapatão de piercing e cabelo azul, recuou um passo. Cami era caos, mas um caos tropical, colorido. Já ela era caos gélido, profundo.
"Oi," eu disse, a voz da "Dona Beatriz" demorando a se impor. "Desculpa, a gente... a gente era moradora daqui. Só passamos pra... relembrar." Prazer eu sou a Beatriz e ela a Camila, eu nos apresentei.
Lívia, ela disse, seca.
Eu olhei por cima do ombro dela. O quarto.
O 3B-12 não cheirava mais a Qboa. Cheirava a incenso barato, cigarro e um leve cheiro de... ferro. O quarto estava escuro. As paredes, antes cheias de fotos de mulheres seminuas e lembretes da Dona Maria, agora estavam cobertas de cartazes de bandas góticas e caveiras.
E no fundo, na cama onde eu gozei pela primeira vez com um vibrador, sentada, estava a outra garota. Exatamente igual à Lívia. Mais pálida, mais silenciosa. Os olhos pretos nos encarando.
Lívia olhou para mim. Olhou para Cami, da cabeça aos pés. Seus olhos pararam nos piercings da Cami e no meu corpo gordo, que eu tinha vestindo num moletom largo.
Lívia olhou para a outra garota. A chamou pelo nome, Nina, ela disse. Elas tiveram uma conversa de um segundo. Um olhar de puro entendimento. “Essas são elas”.
Lívia se virou para nós.
"Entrem."
A voz dela era a voz do destino.
Eu e Cami entramos. O apartamento era menor, mais abafado, e agora mais escuro do que nunca. O cheiro de incenso barato grudou no meu moletom.
"O quarto tá um pouco... diferente," eu disse, tentando ser simpática.
"A gente não gosta de sol," Lívia respondeu, fechando a porta com um clac pesado.
Nina levantou da cama. Seu movimento era lento. Ela era esguia, mas a tensão no corpo dela era palpável. As duas novas moradoras. Elas não pareciam putas. Pareciam feiticeiras.
"Vocês vieram ver a mobília," Nina disse, os olhos dela fixos em mim.
"A gente veio... matar a saudade," Cami respondeu, voltando ao normal, o sorriso sujo. "Essa cama aqui," Cami apontou para o colchão rangente, "essa cama tem história. Tem mais gozo, suor e porra do que a Biblioteca Nacional tem de livro." E riu alto.
Lívia e Nina se entreolharam de novo. Um sorriso lento, quase invisível, se formou na boca de Lívia.
"A gente sabe," Lívia disse. "Foi por isso que a gente pegou esse quarto."
"A fama," Nina disse. "A gente ouviu as histórias, as lendas.” Ela disse. As duas garotas que faziam o 3B-12 acordar todas as noites.
Eu senti o calor. Não era o calor da Dona Maria, que era fogo. Era um calor elétrico, frio, que subia pela minha espinha. Era um novo jogo. Com novas regras.
"E então," eu disse, tirando meu moletom. Eu fiquei só com uma regata e a calça jeans. Eu precisava impor minha verdade. O meu corpo gordo, o meu poder, era a minha identidade. "As lendas... vocês acham que as novas moradoras estão à altura da história desse lugar? Ou a gente vai ter que dar uma aulinha?"
Nina andou. Ela andou devagar. E não parou na Cami. Ela andou até mim.
O rosto branco dela estava a centímetros do meu. O cheiro dela era de carvão e metal. Os olhos dela desceram para o meu peito.
"A gente não gosta de teoria, Beatriz," Nina sussurrou. "A gente gosta de... prática."
Ela estendeu a mão pálida. E tocou. Não no meu peito. Mas na cicatriz que eu tinha na minha coxa.
Lívia, na porta, pegou algo de dentro do bolso. Era um cinto de couro preto.
Cami, que tinha visto o movimento, apenas riu. Uma risada baixa, excitada.
"Puta merda, Bia," Cami sussurrou. "Eu amo a gente."
"Eu também," eu disse, olhando nos olhos negros de Nina. "Eu também amo a gente."
Eu sabia. A gente não ia sair do 3B-12 limpas. E a nossa "viagem ao passado" ia se tornar a porra do futuro.