Acordar com a pele ainda cantando sua nova melodia era como habitar um corpo estrangeiro. A euforia da noite anterior dera lugar a uma realidade mais complexa: Sofia carregaria aquelas marcas para sempre, e com elas, a memória indelével de cada escolha que a levara até ali. A palavra Ananke em seu ventre não era apenas um símbolo, mas uma sentença gravada em sua própria carne. A inevitabilidade agora era parte de sua anatomia, e essa realização trazia uma solidão vertiginosa. Ela havia se tornado o próprio caminho que trilhara, e não havia mais como fingir que poderia desviar-se dele.
Nos dias que se seguiram ao ritual, as reações das pessoas comuns às suas tatuagens visíveis tornaram-se um teste diário. Alguns olhares eram de admiração, outros de repulsa, a maioria de incompreensão. Cada um desses olhares a lembrava do abismo que agora a separava do mundo normal. Ela estava permanentemente marcada não apenas como propriedade de Almeida, mas como participante voluntária de um universo de prazer e dor que a sociedade sequer conseguia nomear. O conflito não era mais sobre certo ou errado, mas sobre como viver num mundo duplo - um pé na realidade comum, o outro firmemente plantado num reino de sombras.
A serenidade que Almeida demonstrava ao observar suas marcas era ao mesmo tempo reconfortante e perturbadora. Ele a olhava com a satisfação de um colecionador que finalmente adquiriu sua peça mais rara, mas também com uma curiosidade clinical, como se esperasse ver como a tinta se comportaria sob diferentes condições de estresse. Havia uma pergunta não formulada pairando entre eles: o que se espera de uma obra de arte que já está concluída? Ela sentia que, de alguma forma, seu valor para ele mudara - não diminuíra, mas transformara-se em algo mais precioso e, paradoxalmente, mais descartável.
Foi nesse estado de permanente tensão entre aceitação e dúvida que a nova proposta chegou. Enquanto os dedos de Almeida traçavam o contorno do olho tatuado acima de sua boceta, Sofia sentiu um frio na espinha que nada tinha a ver com prazer. Ela conhecia aquele silêncio particular, aquela pausa calculada que sempre precedia suas provas mais difíceis. As marcas eternas haviam respondido a pergunta "quem você é?". O que viria a seguir, ela intuía, responderia à questão muito mais perigosa: "até onde você está disposta a ir?".
A proposta chegou envolta em silêncio, durante uma de suas sessões de meditação pós-Ritual. As marcas eternas em suas costas e ventre ainda latejavam, uma sinfonia silenciosa de dor e pertencimento. Almeida a observava, seus dedos traçando o contorno do olho tatuado acima de sua boceta, quando sua mão parou.
“Há um passo final, Sofia,“ sua voz era suave, mas carregada de um peso novo. “Um teste que transcende a dor física e a submissão ritualizada. Um teste de lealdade através da deslealdade.“
Sofia abriu os olhos, encontrando seu olhar sério. “O que o senhor quer que eu faça?“
“Quero que me traia.“
As palavras pairaram no ar entre eles, densas e impossíveis. Sofia sentiu um frio percorrer sua espinha, apesar do calor do ambiente.
“Trair? Como? Por quê?“ Sua voz estava um fio, a confusão uma rara intrusa em seu estado de graça.
Almeida se levantou e começou a circular a sala, suas mãos nas costas. “Até agora, sua submissão foi uma linha reta. Você se entregou a mim, ao Clube, ao Barão. Sempre sob meu olhar, minha aprovação tácita ou explícita. Mas a verdadeira maestria, o domínio absoluto sobre si mesma, vem quando você pratica os rituais que lhe ensinei... longe de mim. Quando a escolha de se submeter é apenas sua, e o prazer que você sente não é um tributo ao seu mestre, mas um ato de auto-afirmação.“
Ele parou diante dela, seus olhos brilhando por trás das lentes. “Conheci um jovem. Um artista. Seu nome é Lorenzo. Ele é tudo o que eu não sou: jovem, impulsivo, despretensioso, cheio de um fogo bruto e não refinado. Ele viu você em uma galeria. Ficou obcecado. Ele a quer, Sofia. E eu quero que você vá até ele. Que você se deite com ele. Que você permita que ele a possua, que a explore, que tente, em sua ignorância, marcar você de uma forma que as minhas marcas eternas não possam.“
Sofia sentiu um nó de emoções conflitantes se formar em seu peito. Ciúme? Medo? Excitação? Era uma proposta perversa. Uma traição não como um ato de rebeldia, mas como a forma mais elevada de obediência. Uma prova de que suas ações não eram mais ditadas por ele, mas pela essência que ele nela instalara.
“E... e o senhor? Onde estará?“ ela perguntou, sua voz trêmula.
“Estarei observando,“ ele respondeu, sua voz impassível. “Sempre observando. Mas ele não saberá. E você... você agirá como se eu não existisse. Como se todo o seu treinamento, todo o seu prazer, fosse um dom inato que você está compartilhando com ele. Será a sua performance mais difícil.“
O encontro foi marcado. Lorenzo morava em um loft no bairro boêmio da cidade, um espaço caótico e cheio de telas pintadas, latas de tinta e o cheiro agridoce de patchouli e óleo de linhaça. Ele era exatamente como Almeida descrevera: cabelos cacheados e rebeldes, olhos castanhos cheios de paixão desordenada, mãos manchadas de tinta. Ele a recebeu com um misto de admiração e desejo possessivo que era estranhamente refrescante após a precisão calculista de Almeida.
“Você é mais bonita do que eu lembrava,“ ele disse, sua voz um pouco áspera, puxando-a para dentro e fechando a porta com o pé.
Sofia sentia o peso do olhar de Almeida, imaginando-o em algum lugar, talvez no prédio em frente, com um par de óculos de visão noturna, observando cada movimento. Era uma ideia que a excitava e a aterrorizava.
Lorenzo não perdeu tempo. Ele a beijou com uma fome animal, suas mãos sujas de tinta marcando seu vestido branco. Era um beijo desleixado, úmido, sem a técnica cirúrgica de Almeida. E, de uma forma estranha, era eletrizante. Ele a levou para o colchão no chão, cercado por telas que mostravam figuras distorcidas em cores violentas.
“Eu quero pintar você,“ ele rosnou entre um beijo e outro, rasgando seu vestido. “Quero pintar você com minha língua, com meu pau.“
Ele a deixou nua sob a luz fraca de um abajur, e seus olhos percorreram seu corpo tatuado com admiração crua. “Que porra é essa?“ ele perguntou, tocando o Ananke em seu ventre.
“É quem eu sou,“ ela respondeu, e pela primeira vez, sentiu que era a verdade.
Ele não a preparou. Não houve jogos de poder conscientes, nenhuma ritualização da dor. Havia apenas desejo bruto. Ele a empurrou contra o colchão, abriu suas pernas e enterrou seu rosto em sua boceta com uma urgência que a fez gritar. Sua língua era uma fera indisciplinada, lambendo, chupando, mordiscando sem a precisão metódica a que ela estava acostumada. Era caótico, quase violento em sua falta de refinamento. E funcionou. Ondas de prazer cru, não filtrado pela lente da submissão, percorreram seu corpo.
Ele a penetrou com seu pau, que era mais fino e mais jovem que o de Almeida, mas não menos determinado. Ele a fodeu com uma energia quase desesperada, como se tentasse se fundir com ela, possuí-la completamente em um único ato. Ele gritava seu nome, palavras de baixo calão e declarações passionais saindo de sua boca em um fluxo desordenado.
E Sofia... Sofia se perdeu. A princípio, ela tentou manter a pose, lembrar-se de que estava sendo observada, que isso era um teste. Mas a intensidade primitiva de Lorenzo, o desejo puro e não intelectualizado, foi corroendo suas defesas. Ela começou a responder com a mesma moeda, seus quadris encontrando os dele com força, suas unhas cavando sulcos em suas costas, seus gemidos saindo livres e sem a modulação que Almeida tanto apreciava.
Foi quando ele a virou de quatro, no meio do caos do estúdio, e entrou em seu cuzinho sem cerimônia, que a traição se consumou. Não havia a preparação lenta e dolorosa, a conversa suja e controlada. Havia apenas a ardência repentina, o grito de surpresa e prazer que saiu de sua garganta, e o ritmo frenético e caótico dele. Ela olhou para uma das telas, uma explosão de vermelho e preto, e viu seu próprio reflexo distorcido. E naquele momento, ela não pensou em Almeida. Pensou apenas na sensação, no fogo que queimava em suas entranhas, no homem que a possuía com uma autentidade que beirava a violência.
Seu orgasmo foi um cataclisma. Um terremoto que parecia vir do centro da terra, sacudindo-a até os ossos. Ela gritou, um som animal e cru, enquanto Lorenzo jorrava dentro dela, seu próprio grito um rugido de triunfo.
Eles desabaram juntos, ofegantes, suados, cobertos das marcas um do outro. O silêncio que se seguiu foi diferente de todos os outros. Não era o silêncio da contemplação, da reverência ou da conquista. Era o silêncio do esgotamento puro.
Foi então, na quietude pós-clímax, que Sofia sentiu a falta. A falta do olhar aprovador de Almeida. A falta da estrutura, do significado. O prazer com Lorenzo tinha sido real, intenso, mas era vazio. Era um furacão que passara, deixando destruição, mas nenhuma nova construção.
Ela se vestiu em silêncio, sob o olhar satisfeito e sonolento de Lorenzo. Quando ela saiu do loft, o ar noturno pareceu gelado contra sua pele quente.
Almeida a esperava na esquina, encostado em seu carro. Seu rosto estava impassível.
“E então?“ ele perguntou quando ela se aproximou.
Sofia parou diante dele. Suas pernas ainda tremiam. Sua boceta e seu cuzinho ainda latejavam com a memória do jovem artista. Ela olhou nos olhos de seu mestre.
“Foi prazeroso,“ ela disse, sua voz clara e estável. “Mas foi insignificante. Foi barulho. E barulho... é tudo o que é quando você já conhece a música.“
Um sorriso lento e profundo se abriu no rosto de Almeida. Ele abriu a porta do carro para ela.
“Bem-vinda de volta, Sofia,“ ele disse, e naquela simples frase, ela soube que havia passado na prova final.
A traição consensual não a afastara dele. Pelo contrário, provou que não havia lugar para onde ela pudesse ir que não a levasse de volta para seus braços. Ela era dele, não por obrigação, não por medo, mas por uma escolha informada, por uma preferência da alma. E isso era a mais pura forma de lealdade.