Aquela noite foi diferente. O jantar seguia seu ritmo normal. Luzes baixas, barulho de taças, pratos servidos, e conversas que se misturavam a sorrisos. Todos da equipe se fizeram presentes, desde o porteiro até o mais graduado docente. Era curioso observar como o ambiente escolar, antes palco de regras, de comando, de vozes firmes e uniformes alinhados, agora se transformava num espaço onde as hierarquias dançavam num compasso menos rígido, mais humano.
As esposas dos colaboradores estavam impecáveis. Algumas conversavam entre si, mas seus olhos escapavam frequentemente em minha direção. Não havia vulgaridade longe disso. Mas havia algo nos gestos, como cruzavam as pernas lentamente quando sabiam que estavam no meu campo de visão. Era como se testassem limites que não precisavam ser ditos. Como se jogassem um jogo silencioso, do qual todos ali sabiam as regras, mas fingiam desconhecer. Os maridos homens corretos, estudiosos, muitos deles bons amigos pareciam deslocados, em outra frequência. Ocupavam-se em conversas sobre reformas educacionais, política pública, ou anedotas triviais. Alguns riam com um esforço visível, outros se silenciavam diante do brilho natural das esposas. E em mim, o olhar deles encontrava não a competição, mas uma espécie de reverência resignada. Como se, no fundo, entendessem que minha presença alterava a dinâmica do ambiente.
Percebi, com o tempo, que a admiração ultrapassava a barreira profissional. Havia ali algo mais profundo, respeito misturado com uma entrega silenciosa. Um ou dois deles chegaram a comentar com um meio sorriso e um tom quase brincalhão como suas esposas falavam de mim em casa. Major aqui, Major ali e completavam com um riso tímido. Mas eu percebia. Cada gesto dizia mais que qualquer frase. E as esposas, com sua inteligência sutil, sabiam disso. Uma delas, a esposa do professor Celso, deixou escapar uma frase enquanto eu servia cerveja, sempre achei que uma escola bem comandada reflete quem está no topo e isso com os olhos fixos nos meus, e um leve sorriso nos lábios que durou tempo demais para ser casual. Sueli, a esposa do professor Geraldo mulher refinada, de presença firme me observava com um interesse diferente. Havia nela uma compostura clássica, mas também uma inquietação no olhar, como se algo ali dentro estivesse trancado há tempo demais.
Fiz questão de fazer um discurso, onde agradecia ao empenho de todos, mostrando a importância da união e o comprometimento do docente ao mais humilde cargo dentro da hierarquia da instituição. Fui aplaudido, de pé por todos que se faziam presente. Foi durante a sobremesa que o inesperado aconteceu. Professor Geraldo se levantou, taça na mão. Um brinde. Discreto, simples, mas simbólico. Agradeceu pela convivência, pelo clima que eu havia trazido à escola usou a palavra inspiração. E, ao final, olhou para mim de forma franca, quase desarmada, e disse, Major, se me permite, Sueli e eu gostaríamos muito de recebê-lo em nossa casa para um jantar com a nossa família. Será uma honra. E após uma pausa, completou, olhando ao redor, aliás, me arrisco a dizer que todos aqui adorariam fazer o mesmo. Não é, senhores e senhoras?
Os outros professores assentiram, uns rindo, outros mais sérios, mas todos com aquele mesmo brilho incômodo nos olhos. Um por um, começaram a me convidar. Jantares em suas casas. Um gesto simples. Lá em casa minha esposa adoraria disse o professor Celso, rindo nervosamente. A minha vive dizendo que o senhor devia ensinar mais do que disciplina, Major completou outro.
A noite na escola terminava entre as últimas piadas, louças empilhadas. Alguns professores já haviam ido embora. Os mais acomodados agora conversavam em pequenos grupos dispersos. E, como sempre, os mais interessantes ainda estavam por perto, olhos atentos, copos pela metade, silêncios carregados. Eu, observava com calma, o resultado do jantar, que se revelou um pouco mais verdadeiro do que deveria. Foi quando vi um movimento ao meu lado, o marido de Camila. Então ele disse, Major noite interessante, não é e sorriu. Eu me virei e retribui o aperto de mão e respondi, foi ótima eu agradeço a sua presença. O homem sorriu, e disse Camila comentou que o senhor gosta de livros. Temos uma boa biblioteca em casa. Talvez possamos convidá-lo para jantar um dia desses. Coisa simples. Ela cozinha bem. Olhei e notei um esforço, uma mistura de permissão com medo, disfarçado de cortesia. Eu Aceito. Mas só se for o senhor quem preparar a cerveja. Camila pode cuidar do tempero. O homem sorriu, rendido.
E não foi o único. Minutos depois, o marido de Helena se aproximou. Discreto, minha esposa também tem falado muito sobre seu trabalho, Major. Sobre como tem elevado o padrão da escola. É admirável. Eu respondi, sua digníssima esposa é excelente no que faz. Enxerga onde muitos apenas anotam. Então ele disse, sim, bem, se algum dia quiser conversar sobre projetos integrados, pode jantar conosco. Seria uma honra. Eu respondi, será um prazer. Helena parece gostar de jantares longos. Espero que a conversa também seja. O homem riu.
Por fim, veio o marido de Diana. Mais expansivo. Mais fácil de ler, Diana comentou que o senhor está sozinho na capital. Isso deve ser difícil, não é, família longe, rotina intensa. Eu respondi, é mas certas solidões são úteis. Deixam espaço para observar com mais clareza. Então ele disse, a gente costuma reunir uns amigos em casa. Sem formalidade. Diana sempre arruma uma desculpa para abrir vinho ou fazer carne na brasa. Seria ótimo tê-lo lá. Eu respondi, se ela fizer a carne eu levo a cerveja. O homem gargalhou, como se tivesse recebido o aval que precisava.
Mais tarde, quando o salão estava quase vazio, Sueli apareceu de novo. Ela chegou do meu lado, sem pedir licença, como sempre fazia. Ela disse, então eles convidaram. Eu respondi, sim. Ela disse, e você vai? Eu respondi, claro. Ela disse, você gosta de provocar. Eu respondi, Não. Eu gosto de ver até onde cada um vai quando ninguém mais está assistindo. Ela riu, e me olhou com respeito, e disse, eles são mais fracos do que parecem. Eu respondi, ou mais corajosos, pois o que se teme exige uma força que pouca gente entende. Geraldo, que apareceu ao fundo, disse, Cuidado, Major, quem visita muitas casas, uma hora vira morador. Eu então respondi, e quem mora em todas, nunca pertence a nenhuma. E ali, naquela sequência quase ensaiada de convites, entendi tudo. Não se tratava de comida, nem de protocolo social. Era um gesto de entrega. Um ritual de aproximação. Um reconhecimento silencioso da minha figura, não apenas como Major, mas como homem que, sem dizer, ocupava espaços que outros já haviam deixado vagos há muito tempo. Naquela noite, ao deixar a escola, voltando para o meu apartamento, soube que uma nova fase havia começado. Os olhos me seguiram até a saída. Alguns, por desejo. Outros, por curiosidade. E outros, por uma espécie de rendição respeitosa. Não aceitei todos os convites de imediato. Mas guardei cada um. Como quem sabe que, cedo ou tarde, vai voltar.