Lucas chegou a Salvador numa tarde abafada, aquele calor pesado que parecia se agarrar à pele e não soltar nunca. Carregava a mochila nas costas e uma mala simples, o coração acelerado pela expectativa da faculdade que começaria na semana seguinte. Aos 21 anos, ainda tinha no corpo a leveza de um rapaz do interior: branco, magro, rosto delicado, jeito meio perdido, quase frágil. Sempre ouvira da mãe que era especial, que precisava ser protegido, mas agora estava sozinho, jogado no turbilhão da cidade grande. O pai tinha resolvido seu destino de moradia com uma ligação rápida: ia ficar hospedado com Renato, amigo antigo de infância, homem de confiança, caminhoneiro quarentão que tinha deixado as estradas de lado para tentar recomeçar na capital. Lucas lembrava dele de encontros familiares, de festas de São João e visitas rápidas, mas não guardava boas memórias. Renato nunca fora suave com ele. Pelo contrário: vivia repetindo que o menino era mimado demais, que precisava aprender a se virar, que o pai deveria criar ele com mais dureza. Lucas, por dentro, tinha um misto de raiva e medo daquele homem. Renato não passava despercebido. Negro, alto, ombros largos, braços que pareciam troncos, pernas grossas de tanto treino. Lutador de MMA amador, tinha conquistado o apelido de “Brutal” não só pelo corpo musculoso, mas pelo jeito bruto de ser, tanto no octógono quanto na vida. Usava a cabeça raspada e a barba cheia, já mesclada de fios grisalhos, que davam um ar ainda mais rústico e agressivo. O corpo era pesado: músculos duros convivendo com uma barriga levemente avantajada, resultado da mistura de cerveja, estrada e força física. Lucas lembrava que a ex-mulher de Renato se queixava do mesmo: do jeito machão, do temperamento difícil, da pose sempre de homem que nunca abaixa a cabeça. Ele era o oposto do que Lucas conhecia como lar, carinho e cuidado. Por isso, a simples ideia de morar com ele trazia um arrepio estranho, uma mistura de ansiedade e desconfiança. Quando a porta do apartamento se abriu e Renato apareceu, a cena parecia confirmar todas essas memórias: ele estava de bermuda jeans gasta e regata preta colada no corpo, deixando à mostra os braços imensos e a tatuagem desbotada no ombro. O cheiro de desodorante barato misturado a suor fresco escapava pelo corredor estreito. O olhar era firme, incisivo, e a voz grossa ecoou pelo hall. — Então tu chegou, moleque… entra logo aí, não fica moscando na porta não. Lucas respirou fundo, sentiu o peso daquela presença encher o espaço e atravessou a soleira, com a estranha sensação de que a partir dali sua vida ia mudar de um jeito que ele ainda não conseguia imaginar. Os primeiros dias na capital foram como um soco lento no estômago de Lucas. A cidade era barulhenta, cheia de buzinas, ônibus lotados, gente atravessando a rua sem olhar para trás. Tudo parecia correr em um ritmo que ele ainda não acompanhava. Na faculdade, andava perdido entre corredores, tentando entender a lógica dos horários e das matérias, sempre com um caderno apertado contra o peito, como se fosse uma armadura contra a hostilidade da metrópole. Em casa, a adaptação era ainda mais complicada. Renato, o anfitrião, não fazia esforço para parecer simpático. Logo no primeiro dia, ditou as regras: nada de levar gente estranha pro apartamento, nada de bagunça, e se fosse usar cozinha, que lavasse a louça depois. Lucas ouviu calado, apenas assentindo, enquanto observava o corpo enorme do homem ocupando o pequeno espaço da sala. Era como viver ao lado de uma sombra pesada, que impunha respeito até no silêncio. Quando não estava na faculdade, Lucas se trancava no quarto. Passava horas na frente do computador, mergulhado em filmes, músicas e trabalhos, tentando se isolar daquele ambiente que não lhe parecia nada acolhedor. Só saía para preparar alguma comida rápida ou para lavar roupa, sempre no compasso tímido de quem tinha medo de incomodar. Renato, por outro lado, era presença constante, espalhada pela casa. Caminhava sem camisa, exibindo aquele peitoral largo coberto por pelos, a barriga pesada que não escondia a força, os braços sempre marcados pelas veias saltadas. Gostava de se jogar no sofá da sala, cerveja na mão, gritando com a televisão enquanto o Bahia sofria mais uma derrota. — Puta que pariu, esse time é uma desgraça! — rugia, a voz grave enchendo os cômodos, enquanto a mão descansava dentro da cueca larga, ajeitando-se sem pudor. Lucas fingia não reparar, mas o incômodo era inevitável. Aquele homem parecia um animal solto dentro da própria casa: suava, arrotava alto, ria como se quisesse que o prédio inteiro ouvisse. E ainda tinha as provocações constantes, sempre lançadas no ar, como cutucadas que acertavam fundo. — Tu passa o dia inteiro trancado nesse quarto, é? — perguntou certa noite, quando Lucas atravessava a sala para buscar água. — Assim vai continuar um moleque fraco, sem moral. Homem de verdade vai pra rua, corre atrás, mete o peito. Tu parece mais uma menina tímida que tem medo até de falar. Lucas engoliu seco, desviando o olhar. A vergonha queimava no rosto, mas não tinha coragem de responder. — Teu pai devia ter te ensinado a ser mais homem, bicho. Pega num ferro, vai treinar, ganha músculo. Ficar só na frente desse computador não vai te levar a lugar nenhum. O rapaz entrou no quarto rápido, fechando a porta como quem escapa de um perigo. O coração batia acelerado, não só pela bronca, mas pelo peso daquela voz grossa ecoando nele. Renato era um desafio constante, um espelho de tudo o que ele não era. E essa convivência forçada começava a mexer com ele de maneiras que ainda não sabia nomear. A rotina na casa parecia um duelo silencioso, mas com o tempo alguma coisa começou a se deslocar, como se as peças estivessem mudando de lugar. Entre uma bronca e outra, entre comentários atravessados durante o jantar, Lucas começou a perceber que Renato não era apenas aquele poço de grosseria que sempre lembrara da infância. Havia camadas escondidas no jeito marrento, gestos que escapavam de sua brutalidade e revelavam uma forma estranha de cuidado. Era no meio da semana, quando Lucas chegava cansado da faculdade, que Renato aparecia com alguma coisa nas mãos. Uma camisa nova, ainda com cheiro de loja, ou um cordão simples de prata, que dizia ter conseguido numa entrega qualquer. Outras vezes, largava sobre a mesa um relógio usado, mas ainda firme, dizendo apenas: — Vê se usa isso aí, pelo menos pra não se perder no horário. Lucas ficava sem graça, sem saber se agradecia ou se estranhava. Não era comum ganhar presentes de um homem como Renato. O gesto vinha sempre acompanhado de uma expressão dura, como se aquilo não tivesse importância, mas no fundo, no brilho rápido dos olhos, havia algo mais: um jeito desajeitado de oferecer carinho. Ele continuava o mesmo: voz grossa, piadas idiotas, broncas sobre “ser mais homem”. Mas de repente, quando estavam jantando e Renato contava histórias das estradas, Lucas se pegava prestando atenção em detalhes que antes passavam batido: o jeito como ele segurava o copo, as mãos grandes com marcas de calos, o sorriso de canto que surgia raramente, quando lembrava de alguma situação engraçada. Até o riso escandaloso, que antes incomodava, agora parecia encher o apartamento de uma energia inesperada. Era uma proximidade estranha, quase desconfortável. Renato não sabia demonstrar afeto sem que fosse na base da brutalidade, mas mesmo assim Lucas sentia. E esse sentimento novo, essa mistura de respeito, gratidão e curiosidade, ia crescendo silenciosamente. Às vezes, quando Renato passava perto demais, o calor do corpo dele parecia grudar na pele de Lucas. O cheiro forte de suor misturado a desodorante barato já não era apenas incômodo: era algo que ficava preso no ar, difícil de ignorar. Lucas não sabia explicar, mas aquele homem, com toda sua arrogância e jeito bruto, estava começando a despertar nele uma atenção diferente, quase perigosa. Naquela noite, depois do jantar, Lucas se recolheu cedo. O apartamento estava em silêncio, só o barulho distante da televisão vazava pela porta entreaberta da sala, onde Renato ainda assistia a algum programa qualquer. Deitado na cama, com a luz fraca do abajur iluminando o quarto simples, o rapaz encarava o teto, os pensamentos rodando sem parar. Era estranho como a vida tinha dado essa guinada tão brusca. Uma semana atrás, ainda estava no interior, cercado de rotinas conhecidas, protegido pela mãe, pelos amigos de infância, pelos espaços que sempre lhe pareceram seguros. Agora, estava em Salvador, enfrentando ônibus lotados, professores exigentes, colegas novos e, principalmente, a convivência diária com um homem que parecia um enigma. Renato continuava sendo aquele brutamontes de voz grossa, sempre com uma piada atravessada ou uma crítica pronta para disparar. Mas havia outra coisa por baixo disso. A forma como, do nada, deixava uma camisa nova em cima da cama, ou oferecia um relógio velho sem fazer cerimônia, revelava um lado que Lucas jamais teria imaginado. Era como se o “Brutal” tivesse aprendido a demonstrar afeto sem nunca admitir, como quem faz carinho com soco. Virando-se de lado, Lucas puxou o lençol até o peito e suspirou fundo. Ainda se sentia inseguro, meio deslocado, mas a cada dia notava que aquela convivência podia lhe ensinar mais do que esperava. Talvez aprendesse a ser mais independente, talvez aprendesse a lidar com a dureza da vida. E talvez… talvez descobrisse coisas sobre si mesmo que nunca teve coragem de encarar. O silêncio do quarto era pesado, mas ao mesmo tempo carregava uma promessa. Havia tensão no ar, não só pela faculdade que se aproximava como um desafio enorme, mas também pelo vínculo estranho e indefinido com Renato. Era um começo incerto, cheio de dúvidas, mas algo dentro dele dizia que aquela nova fase não seria apenas sobre estudar ou amadurecer. Seria sobre se transformar de um jeito que ele ainda não conseguia prever. Lucas fechou os olhos, o corpo cansado, mas a mente desperta, e deixou-se levar pelo mistério dessa sensação que começava a nascer, como uma chama pequena prestes a crescer.
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