“Será que o amor pode ultrapassar todas as barreiras? até as convenções?”
Enquanto eu vagava perdida em meus pensamentos, meu pai diz:
— Ouvi dizer que música boa, às vezes, fala mais do que a gente consegue dizer.
— É mesmo, pai? — respondi, sem levantar o olhar.
— É… tem letra que parece feita pra certas pessoas
Eu prendi a respiração por um segundo. Depois ri, nervosa, disfarçando.
— O senhor anda filosófico ultimamente.
Ele sorriu e disse:
— Tem um lado meu que você não conhece.
Fiquei calada, só pensei: “Ai pai, e pelo nosso bem, pretendo não conhecer”
À tarde, o telefone tocou. Era meu marido cobrando retorno, decisões, prazos. Falei pouco, e ao desligar o telefone fiquei alguns segundos parada, olhando o nada.
“Talvez..” pensei,
“talvez fosse hora de voltar.Talvez já tivesse feito o que precisava fazer aqui”
Mas aquele pensamento veio acompanhado de um aperto no peito — algo que eu não sabia explicar e preferi não comentar com meu pai.A noite, conversamos na varanda sobre coisas normais, da chuva que prometia vir, de como as coisas na cidade mudaram nos ultimos anos.Mas, de repente, as palavras tomaram outro rumo.
— Sabe, filha, às vezes a gente passa a vida esperando sentir de novo o que sentiu uma vez — disse ele encarando o horizonte.
Eu virei rosto devagar olhando pra ele e falei:
— E quando sente?
— Aí é que assusta — respondeu ele, com um meio sorriso. — Porque o coração não avisa quando resolve acordar.
Eu desviei o olhar, sentindo o ar rarefeito.Uma conversa que parecia simples, mas as entrelinhas ardiam.
Resolvi mudar de assunto.
— Pai, que tal… sairmos amanhã? — falei tentando disfarçar a ansiedade na voz.
— Sair? Para onde? — ele perguntou
— Para a festa do Bode Rei. Vai ter música, comida, gente dançando… que tal!?
— Tá… vamos.
Novamente ele aceitou sair de casa sem ao menos reclamar, fiquei novamente surpresa e ao mesmo tempo feliz por ele ter aceitado sair, nem parecia o homem de semanas atrás que não sai de casa nem por decreto.
Quando chegamos, a cidade estava em efervescência. Barracas coloridas, cheiro de carne na brasa, milho cozido e pamonha, sanfonas e zabumbas aquecendo o ar.
Eu estava feliz, rindo à toa com meu chapéu de palha na cabeça puxando meu pai de uma barraca para outra.
— Olha, pai! Rapadura com castanha. Você lembra de quando eu era mais nova e não largava disso? — disse, mordendo um pedaço.
— Lembro sim. Você vivia com os dentes melados, e eu brigava… — ele respondeu, rindo como eu não via há muito tempo.
A princípio, parecia que a fuga havia dado certo, eu estava distraída e ele também.
O forró pé de serra começou a tocar forte. Casais giravam ao nosso redor. Não tinha como ficar parada, empolgada, puxei o braço do meu pai:
— Vamos dançar, pai! — disse com um sorriso travesso
— Eu? Dançar? — ele tentou recusar, mas já era tarde. Eu arrastava ele para o meio do povo.
No começo, foi divertido. Eu ria das pisadas erradas dele, e ele dizia que a culpa era minha que não sabia dançar no ritmo. Mas à medida que a música acelerava, ao som das sanfonas, bateria e triângulo, nossos corpos se aproximavam mais.
Eu vestia um vestido vermelho longo com uma abertura grande nas costas e ele com uma blusa de botão quadriculada e bermuda jeans.
Eu podia sentir o calor e a firmeza das mãos dele em meus ombros, e cintura. Era apenas dança, apenas diversão. Mas o contato despertava algo estranho. Eu tentava disfarçar, e percebia que ele também fazia o mesmo. Eu ria alto, evitava olhar nos olhos dele por muito tempo.
Entre danças e risadas, ambos se permitiam pequenos toques: a minha mão roçando levemente a dele ao pegar uma bebida, o braço dele tocando o dela ao guiá-la para o meio da multidão. Cada gesto era casual, mas a tensão que carregavam tornou cada movimento carregado de significado.
No caminho de volta, o silêncio reinava. O carro carregava não só a poeira da estrada, mas também as sensações estranhas da festa. Eu me perguntava por que certos gestos, certos olhares, estavam me despertando pensamentos que jamais havia tido em relação a ele.
Parecia que nossa proximidade emocional despertou em mim e nele um desejo silencioso, uma vontade perigosa. No dia seguinte, levantei um pouco mais tarde do que tinha me habituado. Encontrei meu pai na cozinha.
— Ainda tomando café? perguntei
— Sim, acordei a pouco tempo.
Peguei uma xícara, me servi e sentei ao lado dele
— Foi divertido ontem né pai ?
— Foi sim, me divertir muito.
— Que bom pai, é isso que eu quero ver daqui pra frente. O senhor feliz, se divertindo.
Ele esticou o braço tocando minha bochecha de leve e disse:
— Isso foi por que você estava aqui comigo
Coloquei minha mão sobre a dele, fiz um leve carinho, em seguida afastei a mão dele do meu rosto e disse:
— Pois é, falando nisso. Meu marido ligou esses dias.
— E o que ele queria? — a voz dele saiu rouca, quase um sussurro.
— Saber quando eu volto.
— E você… quer ir? ele perguntou
Olhei para o chão, como se procurasse uma resposta entre as frestas da madeira.
— É preciso pai.O senhor sabe disso.
— Entendo minha filha. Engraçado, eu achava que essa casa tinha se acostumado com o silêncio — disse ele, com a voz arrastada.
— Agora, parece que vai ser o silêncio que vai se acostumar com ela.
Por um instante, eu quis abraçá-lo, dizer que não iria, que ficaria ali — que o mundo podia esperar. Mas a razão se impôs, dura, implacável.Era preciso ir.Era o único jeito de se proteger dele — e de mim mesma.
Ele se levantou,os joelhos estalaram, o corpo cansado protestando.Passou por mim, nossos olhos se encontraram. E naquele encontro, tudo foi dito — o amor, a culpa, o medo, a renúncia.
— Quando você vai? — ele perguntou
— Acho que depois de amanhã… — respondi, a voz trêmula.
O restante do dia nos falamos pouco, a casa inteira respirava um silêncio pesado, quebrado apenas pelo crepitar distante dos trovões e o farfalhar das folhas molhadas no quintal.
Quando a noite caiu, olhava de longe ele sozinho na varanda.Ele vestia uma camisa azul-clara, um pouco amassada, os botões abertos até o peito, e olhava para o escuro como se buscasse ali alguma resposta que o aliviasse. Provavelmente a tristeza estava sendo sua companheira.
Resolvi intervir, cheguei com uma xícara de chá nas mãos. Meu vestido florido anunciou minha chegada. Enquanto ventava forte, meus cabelos soltos caíam sobre os ombros, trazendo consigo o perfume de alfazema.
— Trouxe para o senhor. disse, pousando a xícara ao lado dele
— Obrigado. Disse ele sem virar o rosto.
Sentei ao lado dele, cruzei as pernas e por um momento não falamos nada um com o outro.
— Já está tudo pronto?terminou de arrumar suas coisas? — ele perguntou.
— Quase.Falta só decidir o que deixar e o que levar. — respondi
Ele respondeu com um “hum” e eu não me aguentando falei:
— Pai!!?
— Que é!?
— O senhor devia procurar companhia. Alguém pra conversar, pra cuidar do senhor. Não devia ficar aqui sozinho depois que eu for embora.
Ele ficou em silêncio por alguns segundos, o olhar perdido na escuridão do quintal. Depois riu — um riso curto, amargo, quase um suspiro.
— E onde é que eu vou achar essa pessoa, minha filha? — perguntou, baixinho. — Uma que sente aqui do meu lado e fale do jeito que você fala, que olhe como você olha, que escute até o meu silêncio?
Desviei o olhar, mordendo o lábio para não deixar a emoção escapar.
— pai…não fala essas coisas
— Me diga, — interrompeu ele, virando-se de repente, — me diga se existe alguém que vá me tratar com o mesmo carinho, com a mesma ternura… com a mesma paixão disfarçada que alguém já não me tratava há tempos.
Minha respiração ficou curta, não sabia o que responder. A chuva começou a cair mais forte, abafando tudo.Por um instante, apenas o som da tempestade preencheu o espaço entre nós.
Os olhos se encontraram — longos, profundos, carregados de coisas que não podiam mais ser ditas.
Me levantei abruptamente.
— Eu… eu vou dormir. Amanhã o dia vai ser longo.
— Vai, — respondeu ele, baixinho, ainda preso naquele olhar.
No quarto, o som da chuva parecia um manto.Me deitei, mas o corpo não encontrava repouso.
Para piorar escuto ainda que baixo o som do radio, toca uma, duas músicas,e a terceira era “Ai, Amor”, de Reginaldo Rossi. A melodia atravessou as paredes, insinuando-se até o meu quarto.
“Ai, amor... por que me faz sofrer assim?
Ai, amor... se eu te quero tanto assim...”
Fiquei imóvel, escutando cada verso. O coração batia acelerado. As lembranças vieram como um vendaval: Os olhares trocados pela casa, as risadas no quintal, os cuidados silenciosos, os toques desajeitados enquanto dançavamos, a mão firme em minha coxa, o modo como ele dizia meu nome — devagar, como quem o saboreia.
Um arrepio percorreu meu corpo. Fechei os olhos, tentando resistir ao turbilhão que se formava dentro de mim, mas era inútil. Cada estrofe da música era um eco do que eu temia sentir.
As lágrimas vieram sem permissão. Me sentei na cama, as mãos trêmulas, e por um instante olhei para a porta.
O som da chuva misturava-se ao refrão da canção, e o nome dele pulsava na cabeça como um chamado. Sem saber por quê — ou talvez sabendo demais — eu levantei
Caminhei descalça pelo corredor, os pés frios tocando o chão úmido, o coração acelerado. Parei diante da porta do quarto do meu pai. A luz ainda estava acesa, uma fresta dourada desenhando linhas no piso.
A minha mão pairou sobre a maçaneta.Respeirei fundo, o som da chuva cobrindo tudo. Dentro do quarto, o rádio ainda tocava:
“Ai, amor... por que me faz sofrer assim...”
Fechei os olhos.Fiquei ali, imóvel, entre o querer e o recuo, entre o amor e o abismo. O trovão estourou no céu...