Subiu devagar, respirando fundo. O corredor do terceiro andar tinha cheiro de incenso e verniz. Quando a porta se abriu, viu Clara sorrindo com aquele jeito sereno de quem enxerga além da superfície.
— Que bom que veio — disse a psicóloga, encostando o corpo de leve na lateral da porta.
O apartamento estava em meia-luz, as cortinas filtrando o último brilho do entardecer. Havia almofadas no chão, taças de vinho sobre uma mesinha e uma música suave, quase invisível.
No sofá, duas mulheres conversavam baixinho. Cíntia reconheceu Rosane, a mais velha, de olhar doce e tenso, e Leila, que tinha uma presença inquieta, um jeito de quem queria rir e se esconder ao mesmo tempo.
Clara apresentou cada uma com delicadeza, como quem orquestra um início.
Nos primeiros minutos, o ar estava carregado de uma timidez comum — o tipo de silêncio que antecede algo novo. Cíntia sentou-se no tapete, cruzando as pernas, e observou as três mulheres. Pensou em como pareciam diferentes e, ainda assim, unidas por uma espécie de desejo de libertação.
Clara falava com voz baixa:
— A ideia não é performance, nem exibição. É encontro. É redescoberta.
Enquanto ela explicava a proposta — um exercício de reconexão com o próprio corpo, sem julgamentos, sem pressa —, Cíntia sentiu um calor subir-lhe à pele. Não era vergonha, mas uma espécie de reverência.
Rosane segurava a taça com firmeza, os dedos trêmulos.
— Não sei se consigo — murmurou.
Clara se aproximou, tocando-lhe o ombro.
— Ninguém precisa “conseguir”. Só precisa sentir.
A luz foi diminuindo, o abajur lançou tons âmbar sobre os rostos. O tempo se dissolveu em gestos sutis: respirações mais longas, mãos que se moviam devagar como se explorassem um território sagrado.
Cíntia, que até então observava, começou a fechar os olhos. Percebia o som das outras, os sussurros, o respirar que se misturava. Era um coro íntimo, humano, bonito — e ela se deixou levar pela cadência das vozes interiores.
Não havia vergonha. Havia apenas presença.
O corpo, antes dividido entre o certo e o errado, tornava-se inteiro, livre. O som do vinho sendo servido, o toque das almofadas, o perfume de jasmim — tudo se fundia em algo que não se podia nomear.
Quando Rosane, a mais contida, abriu os olhos e sorriu pela primeira vez, Cíntia percebeu o que Clara dissera: o prazer, às vezes, é um reencontro com aquilo que foi negado.
O silêncio que veio depois não era vazio, mas denso, como o instante entre um trovão e o eco. Nenhuma delas quis falar de imediato. Apenas respiravam, com um brilho novo no olhar.
Mais tarde, já vestidas com roupas leves, sentaram-se à mesa para dividir uma pizza. O riso brotava fácil, como se o peso de anos tivesse se dissolvido. Rosane contou histórias do marido, Leila falou do namorado caminhoneiro, Clara as escutava com o mesmo olhar paciente.
Cíntia, encostada na cadeira, sentia o corpo leve, quase translúcido.
— Acho que entendi o que significa se libertar — disse, num tom tímido.
Clara inclinou a cabeça:
— E o que é?
— É não sentir culpa por existir inteira.
As outras sorriram.
Quando a noite terminou, Leila e Rosane se despediram primeiro. O som da porta se fechando trouxe um silêncio morno, familiar. Clara recolheu as taças, e Cíntia ficou parada perto da janela, olhando o reflexo da cidade lá embaixo.
A psicóloga voltou-se para ela, encostando-se na moldura da porta.
— Você quer ficar um pouco mais?
Cíntia hesitou, depois assentiu.
— Quero.
Não era desejo no sentido comum, era curiosidade pela continuidade daquele estado de liberdade. O apartamento parecia respirar junto delas, embalado por uma música lenta.
Clara apagou quase todas as luzes, deixando apenas o brilho suave do abajur.
— O corpo tem memórias bonitas — disse, com um sorriso discreto. — E merece ser ouvido com calma.
Cíntia fechou os olhos, sentindo o ar morno tocar-lhe a pele. Pela primeira vez, compreendeu que prazer também podia ser silêncio — o instante em que se está plenamente viva, sem precisar esconder-se.
Lá fora, a cidade dormia. Dentro do apartamento, duas presenças femininas permaneciam acordadas, em um pacto silencioso de autodescoberta.
E Cíntia, enfim, entendeu que o aprendizado daquela noite não terminava ali — começava.

Eu aprecio e já tive a oportunidade de poder observar mesmo com participação restrita. Aliás, curto mais deixando que elas se toquem
Conto delicioso, delicioso, gostoso demais de ler e muito bem escrito. O amor, o desejo, o carinho entre meninas, entre mulheres, sempre é muito lindo e gostoso, até porque não tem cobranças nem disputas, só a busca interminável de dar prazer e receber em troca o mesmo prazer, realmente conto gostoso demais de ler. votado e aprovado