O calor úmido daquela manhã de novembro parecia anunciar tempestade, embora o céu estivesse limpo e azulado sobre o Centro da capital do Império — ou aquilo que, sem aviso, estava prestes a deixar de sê-lo. A cidade despertava com o ranger dos bondes puxados por burros, o som das tropas reunidas no Campo de Santana e o rumor difuso de que algo importante estava acontecendo.
Miguel, estudante de 22 anos, filho de um funcionário público e uma costureira, calçava botas engraxadas, paletó simples e carregava sob o braço livros amarrados com um cordão. Caminhava pela Rua do Ouvidor, onde cafés e livrarias fervilhavam de ideias, quando sentiu seu coração pulsar mais rápido — não pelas supostas questões políticas do dia, mas pela novidade silenciosa do mundo adulto, da vida que se abria como uma porta entreaberta, convidativa, perigosa e fascinante.
Foi então que a viu.
Na porta de uma chapelaria, com uma sombrinha clara apoiada no ombro e o olhar absorto nos rumores da rua, estava Helena, uma mulher viúva de trinta e poucos anos, vestida com elegância discreta, luvas claras e um luto que apenas sugeria a saudade — não a subjugava. Seu rosto era sereno, mas seus olhos tinham uma chama oculta, daquelas que não se extinguem com assinaturas de padres ou decretos.
Miguel, sem coragem para um cumprimento, deixou escapar um olhar longo, respeitoso e encantado. Helena percebeu e sorriu com um canto de boca que não denunciava ousadia, mas leveza.
— Perdoe-me, não quis encará-la… — ele balbuciou.
— Não precisa se desculpar. Poucos ainda olham em vez de apenas ver, disse ela, com voz baixa, tão suave quanto firme.
As conversas nas esquinas cresceram: “é golpe? é festa? é rumor?”. Uma onda de curiosidade coletiva pairava no ar, mas Miguel só conseguia ouvir Helena.
— Dizem que algo se passa no Campo de Santana — comentou ele.
— A História nunca avisa quando está chegando — respondeu ela — apenas se senta à mesa e muda as cadeiras.
Sem perceber, caminharam lado a lado, desviando de carroças, marujos, mascates e soldados. Helena convidou-o para um café discreto na rua próxima, daqueles com cabines de madeira e cortinas curtas que protegiam conversas mais íntimas.
Entre goles de café forte e abafado, ele contou sobre seus estudos, seu amor pelos livros, sua vontade de ensinar e viajar; ela falou de sua viuvez precoce, da solidão elegante e resignada, da paixão por romances franceses e da sua recusa em aceitar que o destino de uma mulher fosse resumido ao luto e à espera.
— Nunca tive medo de viver — disse Helena — apenas de não sentir.
Miguel engoliu seco — e sentiu-se homem.
Quando a agitação da rua cresceu, com soldados passando em marcha e pessoas se acotovelando para ver o desenrolar dos acontecimentos, Helena pousou sua mão enluvada sobre a mão dele, com delicadeza, mas sem timidez.
— Venha comigo, só por um instante — pediu.
Ele não hesitou.
Subiram para um quarto de hospedaria discreta, com mobilia escura, perfume de madeira encerada, lençóis limpos, mas ambiente marcado por segredos urbanos tão comuns na capital. A janela deixava entrever apenas o topo das bandeiras agitadas pelos soldados apressados.
Helena retirou primeiro as luvas, com calma e silêncio.
Depois, o chapéu.
Depois, aproximou o rosto do dele, sem pressa, como quem saboreia o tempo.
Miguel sentiu o perfume de flor noturna misturado ao leve sal da pele carioca. Ela o segurou pela nuca, guiando-o não como professora, mas como mulher segura de seus próprios desejos.
Não houve pressa, nem brutalidade, nem medo.
A roupa caiu como confissão, não como urgência.
A língua explorou como descoberta, não como disputa.
O corpo respondeu como poesia, não como manual.
Entre gemidos baixos, mãos deslizantes, beijos demorados e o calor acumulado da tarde, a cidade lá fora troca de governo — enquanto ali dentro, eles trocavam mundos.
Helena sussurrou próximo ao ouvido:
— Hoje eu renasço… e você nasce comigo.
Quando voltaram à rua, o sol já descia. As pessoas falavam alto:
— Proclamaram! A República foi proclamada! — gritavam.
Miguel olhou Helena nos olhos, como quem sabe que vivera sua própria proclamação.
— Posso voltar a vê-la? — perguntou ele.
Ela sorriu com ternura e ousadia:
— Não me procure…
Mas deixe que o destino nos reencontre.
E desapareceu entre a multidão, como um segredo quente guardado para sempre entre duas eras.
