As lamparinas da vila operária tremeluziam ao vento quando Estela, de 22 anos, fechou a porta do pequeno quarto nos fundos da casa. O corredor estreito ainda cheirava a ferro, graxa e suor, trazidos pelos operários que trabalhavam na fábrica têxtil próxima. Era início da noite, e o silêncio só existia quando os vizinhos cochichavam — nunca quando cessavam.
Estela vivia com a mãe, costureira das famílias “mais finas” do bairro, e com um irmão mais novo que sonhava em ser músico como os rapazes do nascente samba de Vila Isabel. As paredes eram finas, e cada passo parecia denunciá-la ao mundo.
Uma moça direita não podia suspirar alto.
O Brasil vivia tempos de transformações: greves operárias, discursos inflamados contra coronéis e oligarquias, conversas clandestinas sobre anarquismo e socialismo, enquanto padres e patrões reforçavam que mulher honesta devia ser silêncio e obediência. Desejo era doença. Toque no próprio corpo era pecado. E confissão era o único remédio.
Mas o corpo de Estela jamais aprendeu essa obediência.
Todas as noites, quando o bairro repousava e o rádio distante arranhava tangos e choros tortos, ela se deixava envolver pela sensação inquieta que surgia sem convite — o calor nas coxas, o tremor suave nos dedos, o rubor escondido sob o vestido simples de algodão cru.
Ela acendia a lamparina bem baixa, não para ver, mas para ser vista apenas por si mesma.
Tirava o sapato lentamente e depois as roupas, como se estivesse pecando passo a passo.
Sentava-se na cama estreita, ouvindo ao longe o som abafado de sambistas improvisando no quintal do vizinho — ritmo proibido por muitos, amado por outros; assim como o desejo.
Estela pensava nos discursos que ouvira escondida na porta da fábrica:
> “Nenhuma corrente é natural.
Nem a do patrão.
Nem a que acorrenta o corpo da mulher.”
Essas palavras inflamaram nela algo ainda mais perigoso do que o erotismo: consciência.
Fechou os olhos e deixou as mãos viajarem pelo corpo nu, sentindo a própria respiração ganhar cadência. Não precisava imaginar um homem — bastava imaginar liberdade. O prazer não vinha como invasão, mas como retomada.
Seu toque era lento, profundo, quase solene — um rito secreto de emancipação.
Cada suspiro abafado entre os dentes trazia culpa e alívio, como se fosse simultaneamente santa e pagã. Sabia que, se descoberta, seria tachada de “perdida”, “histerizada”, “mulher sem moral”. Talvez até mandada ao médico para “tratamento de nervos”.
Mesmo assim, continuava.
Mesmo assim, florescia.
Porque naquele instante, seu corpo era o único espaço político que realmente possuía.
Quando finalmente deixou escapar um gemido quase imperceptível, o rádio da rua gritou um verso curto, feliz, como se o mundo respondesse com cumplicidade. Estela deitou sobre o lençol fino, sentindo o coração bater forte, como tambor.
Não era apenas prazer — era insubordinação íntima.
Sabia que no dia seguinte vestiria novamente seu recato e sua trança bem presa. Caminharia com os olhos baixos pelo portão da vila. Responderia “sim, senhora” quando necessário. Mas guardaria dentro de si o brilho clandestino daquela noite.
Não era loucura, nem pecado, nem febre:
Era liberdade respirando por debaixo da moral.
E, no silêncio mais ousado do Andaraí, ela sorriu.
