Os primeiros dias foram de puro estranhamento. Maria Eduarda, criada entre hinos de louvor e orações, agora acordava com gritos, palavrões e o ranger de ferros que vinham do corredor. As detentas se moviam em blocos, cada grupo com sua hierarquia invisível, marcada por facções, alianças e medos. Ela tentava não chamar atenção, mas era impossível. Seu caso havia sido notícia — “Mulher mata uma criança na creche da Prefeitura e mente no tribunal” — diziam as manchetes. E ali dentro, ser notícia era ser alvo.
Na primeira semana, uma detenta a empurrou contra a parede e a chamou de mentirosa. O medo congelou-lhe o corpo, até que Luana interveio.
— Aqui dentro ninguém encosta nela — disse, num tom que misturava ordem e proteção.
O nome de Luana tinha peso. Tinha histórias correndo nos corredores e respeito entre guardas e presas. Havia sido namorada de um dos chefes do tráfico e, mesmo ali dentro, seu poder ainda circulava, disfarçado em favores e olhares.
Desde aquele dia, Maria Eduarda passou a se sentir menos exposta. Luana, aos poucos, tornou-se sua tradutora do inferno. Mostrou-lhe o ritmo do presídio, os horários da água, o momento certo de falar e o momento certo de calar. Mostrou-lhe também como conseguir um sabão melhor, uma coberta menos áspera, e, certa noite, até um telefonema — o primeiro em meses.
Do outro lado da linha, a voz da mãe lhe trazia notícias de Rafael, o filho. Estava crescendo rápido, dizia Dona Tereza, e perguntava todos os dias quando a mãe voltaria. Maria Eduarda chorou em silêncio, temendo que alguém ouvisse e transformasse sua dor em piada. Luana apenas ficou ao lado, sem dizer palavra, até que ela desligou.
— A saudade é o pior tipo de castigo — comentou Luana, sem olhar diretamente.
Maria Eduarda assentiu, enxugando as lágrimas com o dorso da mão.
— Eu só queria provar que não fiz o que disseram.
Luana sorriu de canto, com uma melancolia que parecia antiga.
— Aqui dentro, quase ninguém fez o que disseram. O problema é que ninguém acredita.
Os dias se transformaram em meses. O marido de Maria Eduarda deixou de visitá-la. Primeiro, justificava-se com o trabalho. Depois, com o cansaço. Até que as desculpas cessaram por completo. A igreja também silenciou. O pastor que a batizou e lhe impusera as mãos no altar agora se esquivava até das cartas. A fé, antes abrigo, tornava-se labirinto.
Luana percebia a mudança. Sentava-se ao lado dela nos momentos de desespero, dividia o pouco que tinha, oferecia o ombro quando a noite pesava demais. A amizade entre as duas cresceu nos intervalos da dor, e algo que nem as grades podiam conter começou a nascer ali — uma forma de carinho que não pedia permissão, nem nome.
Certa vez, durante a celebração improvisada do aniversário de Luana, as presas cantavam e batiam palmas, e Maria Eduarda riu pela primeira vez em muito tempo. Ao final, as duas se abraçaram e Luana lhe beijou na boca, o que foi correspondido. Foi um abraço longo, quente e sincero de duas mulheres que sabiam o que era perder tudo. Naquele toque, o mundo lá fora pareceu desaparecer — marido, igreja, tribunal, tudo. Restaram apenas duas sobreviventes em meio ao caos.
No silêncio da madrugada, os dois corpos se encontraram. O que para Maria Eduarda sempre foi visto como um pecado não mais fazia sentido naquele momento. Beijos acompanhados de carícias entre dois corpos nus sobrepunhan às doutrinas religiosas que sempre prenderam sua mente e de seus familiares. Os toques lhe proporcionaram um orgasmo de libertação que jamais havia experimentado com o seu marido.
A relação entre elas se intensificou. Não havia palavras para o que sentiam, apenas gestos contidos, olhares demorados, partilhas silenciosas. O afeto se infiltrava entre as frestas das grades, como uma pequena flor nascendo do cimento.
Luana, com seus contatos e influência, começou a agir. Pediu ajuda a advogados da facção, disposta a provar a inocência de Maria Eduarda.
— Você não pertence a este lugar — disse-lhe uma noite, com firmeza.
— E você? — perguntou Maria Eduarda.
Luana deu de ombros.
— Eu já nasci presa. Só mudaram os muros.
Aos poucos, uma rede de profissionais jurídicos começou a se mover lá fora. Documentos foram reexaminados, testemunhas reouvidas. O processo que parecia esquecido ganhou nova vida. Maria Eduarda não sabia de onde vinha aquela força, mas desconfiava que era o amor — aquele amor que o pastor nunca mencionou, o amor que redime, ainda que nasça entre "pecadoras".
Meses depois, o alvará de soltura chegou. O portão de ferro se abriu, e o mesmo som que um dia lhe parecera sentença agora soava como renascimento. Luana a acompanhou até a porta, parada, com o olhar firme.
— Vai lá. O mundo é seu de novo — disse.
— E o seu? — perguntou Maria Eduarda, com lágrimas nos olhos.
Luana sorriu.
— O meu é esse aqui. Mas saber que você tá livre já vale a pena.
Maria Eduarda atravessou o portão com passos lentos, o sol batendo-lhe no rosto como uma bênção antiga. Do lado de fora, não havia ninguém esperando. Nenhum marido, nenhum pastor, nenhuma multidão. Apenas o vento, leve e real, tocando-lhe o rosto.
E, pela primeira vez, sentiu-se verdadeiramente livre — não do cárcere, mas da culpa, do medo e das correntes invisíveis que a vida lhe impusera.
Lá dentro, na cela silenciosa, Luana olhou para o vazio e sorriu. A flor que nascera no concreto ainda estava viva.




