A casa grande, de madeira escura e piso frio, parecia grande demais para uma única mulher. À noite, o silêncio era tão profundo que chegava a tocar sua pele. As outras estâncias e povoados da região também estavam cheios de mulheres que aprendiam a conviver com a ausência — algumas esperando, outras resignadas, outras adoecendo de tristeza e desejo nunca confessado.
Numa manhã de céu cinzento, o tropeiro trouxe uma visitante inesperada: Madame Éloise Durand, francesa radicada no Brasil desde antes da guerra, viúva de um oficial e mãe de dois filhos já crescidos, que agora se encontravam em outra região. Pediu hospedagem por algumas semanas, enquanto resolvia negócios deixados pelo marido.
Era uma mulher distinta, de olhos claros que pareciam enxergar por trás das etiquetas e da obediência feminina. Trazia no perfume, nos gestos e na postura algo que Helena nunca havia visto de perto: liberdade.
Nos primeiros dias, conversaram sobre costuras, louças, idiomas, culinária e o clima incerto. Mas, nas noites de lamparina e chá quente de ervas, Éloise falava de outra coisa — de sentimentos que a vida militar masculina nunca compreendera.
— O corpo de uma mulher não deve ser guardado como um segredo trancado, minha querida — disse ela certa vez, enquanto penteava lentamente os cabelos de Helena, gesto incomum na cultura local.
— Mas… uma esposa só existe para o marido… — respondeu Helena, quase sussurrando.
— Isso é o que eles dizem. Mas você vive? Respira? Sente? Você é sua antes de pertencer a qualquer homem.
Enquanto Helena preparava o chimarrão, a viúva tomou as mãos da amiga com delicadeza, como quem segura algo precioso e esquecido.
— Há solidões que machucam o corpo. Ignorá-lo é crueldade. A natureza não obedece à guerra.
As palavras ficaram presas dentro de Helena durante dias, junto com uma sensação nova, morna, que nascia sem permissão.
Numa noite chuvosa, quando o som das gotas parecia repetir salmos, Helena não conseguiu dormir. Sentiu o coração bater mais forte, como se algo pedisse passagem. A lua não aparecia, e a lamparina projetava uma luz suave, quase cúmplice.
Ela se sentou na cama e, pela primeira vez, tocou o próprio corpo não para lavar, vestir ou rezar, mas para reconhecer.
O pensamento de Éloise guiava sua respiração.
As mãos não eram mais ferramentas — eram voz.
Helena fechou os olhos.
E, no silêncio que envolvia a estância, algo dentro dela floresceu, tímido mas intenso, como uma chama que finalmente encontra oxigênio. Não foi culpa, nem loucura, nem pecado — foi vida reivindicando espaço no corpo abandonado pela guerra.
Quando o clímax interior se desfez em calma e calor, Helena sorriu pela primeira vez em muitos meses.
Não sorriu por Antônio, nem por Éloise — mas por si.
Na manhã seguinte, ao encontrar a francesa à mesa, seus olhos se cruzaram em silêncio.
Éloise ergueu a xícara devagar, como se brindasse algo invisível entre elas:
— Agora, minha querida, você conhece sua própria companhia.
E Helena entendeu:
enquanto os homens lutavam fora, as mulheres lutavam dentro — para não morrer vivas.
Os dias seguintes pareceram mais leves para Helena — não porque a guerra tivesse diminuído, nem porque houvesse notícias de Antônio, mas porque ela descobrira um lugar onde o medo não gritava tão alto: dentro de si.
Éloise, percebendo a mudança, passou a conversar com Helena não como quem ensina, mas como quem reconhece. Havia, entre elas, uma intimidade silenciosa, daquelas que não exige toque, mas o pressente; não exige palavra, mas a sustenta.
Com o tempo, começaram a caminhar pelo campo ao entardecer, sempre usando xales que protegiam do vento cortante e mantinham a discrição necessária à reputação de ambas. Os cavalos pastavam ao longe, indiferentes ao que só o coração humano nomeia.
— Helena, perceba: há dores que vêm de fora, e não podemos impedir. Mas há dores que nós mesmas cultivamos, porque acreditamos que devemos.
— Você acredita que o prazer é cura?
— Acredito que é liberdade. E liberdade é o primeiro passo para sobreviver ao que perdermos.
A frase entrou na alma da jovem como brasa.
Certa tarde, um viajante vindo da fronteira trouxe notícias terríveis: o batalhão ao qual Antônio pertencia sofrera um ataque. Muitos corpos não puderam ser recolhidos, e os nomes ainda seriam confirmados. A possibilidade de viuvez caiu sobre a casa como neve negra.
Helena não chorou de imediato — sentiu apenas um vazio gelado, como se sua existência estivesse suspensa. Éloise a segurou pelos ombros, e naquele instante, o abraço entre duas mulheres ocupou um lugar proibido na história: foi necessário, humano, terno e real.
Quando o desespero finalmente veio, não veio como grito, mas como choro manso, úmido, lento, escondido no colo de Éloise.
— Se ele se foi, quem serei eu agora?
— Você será Helena — inteira, e não metade de alguém.
A partir daquele dia, Helena percebeu que não era a única vivendo uma morte lenta em vida. Outras mulheres das estâncias vizinhas sofriam a mesma dor: abandono sem alternativa, saudade sem corpo, e culpa por possuir um corpo que ainda respirava.
Foi Éloise quem sugeriu, com voz baixa e olhar firme:
— Reunamos mulheres, uma de cada casa, uma de cada canto. Não para falar de pecado, mas para falar de vida. Deixar que cada uma aprenda a ser dona de si, mesmo que em segredo.
E assim, à luz da lamparina, nasce o que jamais seria registrado em livros oficiais, mas viveria na memória subterrânea do feminino:
um círculo clandestino de mulheres, que se encontravam na antiga sala de costura, agora transformada em refúgio:
nenhuma joia, apenas xales e honestidade
nenhuma oração obrigatória, apenas respiração conjunta
nenhuma doutrina, apenas corpo e palavra
Ali, elas compartilhavam suas dores, seus medos e suas pequenas descobertas de prazer e autonomia, longe dos olhos dos padres, capatazes e vizinhos.
Não era apenas um encontro.
Era um pacto.
Com o passar das semanas, o vínculo entre Helena e Éloise ultrapassou a linha da amizade comum — mas não precisava de rótulo, nem de culpa.
Havia momentos em que os olhares demoravam mais do que o esperado.
Havia silêncio que queimava suavemente.
Havia ternura que pertencia só às duas.
Helena, certa noite, disse:
— Você salvou minha alma.
— Não, minha querida. Apenas lhe devolvi a chave.
As mãos se tocaram — não como pecado, mas como destino.
Perfeito — seguirei com intimidade emocional e sensual entre Helena e Éloise, mantendo descrição sugerida, poética, não pornográfica e sem detalhes explícitos do ato sexual.
Incluir também o retorno do marido no Natal, um final feliz, porém com vínculo profundo e definitivo entre as duas mulheres — algo entre amizade, cumplicidade, afeto e memória íntima compartilhada.
As noites tornaram-se mais curtas e quentes à medida que dezembro se aproximava. O vento que soprava dos campos trazia o cheiro da lenha e das ervas queimadas, lembrando às mulheres das estâncias que o espírito do mundo seguia, mesmo durante a guerra.
Helena, agora mais lúcida sobre si, caminhava com passos mais leves — não por ausência de dor, mas por ter descoberto um lar dentro do próprio corpo.
Éloise, por sua vez, observava essa mudança com carinho silencioso, e algo além da amizade começou a nascer no intervalo entre o cuidado e o reconhecimento.
Numa noite de lua cheia, quando o círculo das mulheres já havia encerrado suas falas e preces, Helena permaneceu na sala vazia, segurando um xale que pertencera ao marido — símbolo de memória, mas não mais de prisão.
Éloise entrou devagar, como quem já sabia que era esperada.
— Hoje você não está triste, percebeu.
— Não estou. Estou viva, respondeu Helena.
A francesa sorriu e aproximou-se, tocando com delicadeza a lateral do rosto da jovem — um gesto lento, consciente, cheio de permissão. Helena fechou os olhos, não para esconder-se, mas para sentir com mais verdade.
O abraço que se formou não era de necessidade, mas de escolha.
Não havia pressa, culpa ou medo, apenas duas mulheres que se reconheciam no silêncio que a sociedade nunca entenderia.
O toque que veio depois não foi invasivo nem urgente; foi descoberta compartilhada.
O corpo de ambas conversou em respirações, mãos sutis, calor e ternura, como se nenhuma tivesse sido ensinada a negar-se.
A lamparina iluminava apenas o suficiente para que o momento parecesse eterno e secreto, e ambas sabiam que, embora o mundo lá fora chamasse aquilo de impossível, era real, e real bastava.
Quando se deitaram lado a lado, nenhuma perguntou o que aquilo significava — sabiam que significava tudo o que haviam esperado sentir, mesmo sem nome.
Poucos dias depois, quando os sinos da pequena capela improvisada anunciaram a chegada da Noite de Natal, um mensageiro apareceu cavalgando no portão da estância.
Não trazia luto — trazia vida.
Antônio desceu do cavalo, visivelmente magro, cansado, porém vivo. Recebera dispensa temporária durante o cessar-fogo para passar o Natal com a família. Helena correu até ele, e o abraço que trocaram foi sincero, cheio de alívio e compaixão.
Não havia culpa em seu coração — apenas duas verdades coexistindo: o amor que tinha por ele como marido, e o vínculo profundo com Éloise, que não competia com nada, apenas era.
Ao reencontrar a francesa, Antônio beijou-lhe a mão em respeito, sem imaginar o papel que ela tivera na sobrevivência emocional de sua esposa.
Na tarde seguinte à ceia, Éloise anunciou que seguiria viagem no amanhecer.
Não havia drama — havia entendimento.
Antes de partir, chamou Helena ao estábulo, onde a luz era baixa e o cheiro de feno trazia paz.
— Não vim tirar nada de você, mas devolver o que sempre lhe pertencera: você mesma.
— E agora?, perguntou Helena, com voz embargada.
— Agora você vive… e me guarda num lugar que só nós duas conhecemos.
As mãos se tocaram demoradamente; não como despedida amarga, mas como aliança invisível.
— Prometa que, se nossos caminhos puderem, nos reencontraremos.
— Prometo.
— Nem como amantes, nem apenas como amigas… mas como mulheres que se reconheceram.
Éloise sorriu, cobriu o rosto de Helena com o próprio xale e sussurrou:
> “A liberdade que descobrimos nunca volta a dormir.”
E se foi.
Helena viveu feliz com Antônio, que retornaria definitivamente meses depois. Teve filhos, cantou cantigas, colheu ervas e cuidou da estância.
Nunca faltou alegria em sua casa.
Mas, em noites de vento quente, quando o silêncio era maior que o mundo, ela colocava sobre os ombros o xale de Éloise e fechava os olhos — não para sonhar com outra vida, mas para recordar a coragem que a fez inteira.
E assim seguiu:
amada, amando e essencialmente livre.


