Tô no último ano do ensino médio, numa escola particular comum, nada chique, mas que meus pais pagam com suor. Apesar de ser uma escola particular, eu vou de ônibus. Entrei na escola tarde por causa de uma mudança de cidade, a escola particular era uma forma de correr atrás do prejuízo, mas agora a pressão tá me engolindo viva.
O medo de reprovar não sai da minha cabeça. Não é só a vergonha de ser a garota de 18 que ficou pra trás. É saber que meus pais, que dão duro pra pagar a escola com a aposentadoria do meu pai, vão me olhar com decepção. E, pior, as broncas do meu irmão, que agora tão ficando mais pesadas.
Sobre ele, bem, meu irmão, se chama Rafael, tem 26 anos, é formado em administração e tá passando um tempo aqui em casa porque o apartamento dele tá em reforma. Ele é alto, ombros largos, cabelo castanho penteado pra trás e uma barba rala que dá um ar de autoridade. Puxou o jeito rígido do meu pai, aquele tom que não deixa espaço pra discussão. Como meu pai tá doente, mais fraco, entre consultas e remédios, Rafael assumiu o papel de chefe da casa. Ele até ajuda a pagar parte da minha escola, já que a aposentadoria dos meus pais não cobre tudo e bem, meu pai passou a tomar muitos remédios ultimamente.
Talvez por isso ele seja tão mandão. Desde que voltou, com a esposa, Mariana, ele não perde a chance de me chamar de “desleixada”, dizendo que minhas notas medianas no terceiro semestre são uma vergonha. Ontem, enquanto eu lavava a louça, ele encostou no balcão, braços cruzados, e disse, com aquela voz grave que faz meu estômago gelar: “Clara, se tu reprovar, eu te coloco na linha. Não pense que o fato do Pai ta doente, que eu vou aliviar pra você não, ele da duro pra pagar sua escola, e você tem deixado ele na mão” Eu sei que ele não vai me bater de verdade, mas o jeito que ele fala, o olhar que me prende, me faz tremer. Não é só medo. É uma mistura de respeito e... algo que faz meu coração disparar, algo que eu não quero nomear.
Na escola, as coisas tão complicadas. O Colégio Santa Luzia é uma escola particular simples, com salas de ventilador, corredores de cimento e uma cantina pequena onde os alunos compram salgadinhos e suco de caixinha no intervalo. Os professores, como o professor Eduardo, de matemática, se vestem bem, com terno e gravata, mas nada exagerado. Ele tem uns 45 anos, cabelo grisalho nas têmporas, óculos de armação fina e um jeito sério que me deixa nervosa. O terno azul dele é bem cortado, e, quando ele explica no quadro, eu reparo nas mãos grandes, nos dedos longos segurando o giz. Não sei por que noto isso. Talvez porque minha melhor amiga, Lívia, vive dizendo que ele é “um gostoso”. Lívia também tem 18 anos, mas é o oposto de mim. Ela é confiante, usa a saia do uniforme mais curta, a blusa mais justa, e tá sempre rindo alto, jogando o cabelo cacheado pro lado. E tira notas boas. Não porque estuda tanto, mas porque sabe jogar o jogo.
Outro dia no intervalo, a gente tava na cantina, sentadas numa mesa de plástico, com cheiro de coxinha frita no ar. Eu desabafei com a Lívia, contando do Rafael, das broncas, do medo de reprovar. Minha voz saiu baixinha, o coração apertado. “Lívia, eu não sei o que fazer. Meu irmão tá me pressionando tanto, e meus pais... eles pagam a escola com a aposentadoria. Se eu reprovar, vai ser um desastre. Não sei se eles iriam pagar para eu repetir de ano” Ela me olhou, mordendo um salgadinho, e deu um sorrisinho malicioso. “Clara, relaxa. Tu tá complicando. Quer passar em matemática? É fácil. Faz que nem eu.” Franzi a testa, confusa. “Como assim?” Ela se inclinou, o perfume doce dela me envolvendo, e falou baixo, como se fosse um segredo: “O professor Eduardo. Ele gosta de atenção, sabe? Se tu der um jeitinho, se insinuar, ele te dá a nota. É só jogar o jogo.”
Minhas bochechas pegaram fogo. “Lívia, tá louca? Eu não sei fazer essas coisas!” Ela riu, balançando a cabeça. “Não é tão difícil, Clarinha. É só... tipo, quando tu tiver uma dúvida, e for falar com ele , chega mais perto, alisa o ombro dele como se fosse sem querer. Ou dá um beijo no rosto dele no fim da aula, agradecendo a ‘ajuda’. Roça o corpo no dele quando passar por ele, deixa ele sentir teu perfume. Ele é homem, né? E, vai por mim, ele é gostoso. Não é nem um sacrifício.” Ela piscou, e eu senti um calor subir pelo pescoço. Não era só vergonha. Era uma curiosidade que eu não queria admitir. Fiquei quieta, mexendo no canudo do suco, enquanto imaginava a cena. Eu, alisando o ombro do professor Eduardo, sentindo o tecido do terno sob meus dedos. Meu corpo roçando no dele, o olhar sério dele mudando pra algo... diferente. Meu coração disparou, e eu sacudi a cabeça, tentando afastar o pensamento. Isso é errado, Clara. Você não é assim.
Naquele dia quando cheguei em casa, o peso voltou. Rafael tava na sala, deitado no sofá, assistindo algo no celular. Mariana tava na cozinha, rindo com minha mãe. Ele levantou os olhos quando me viu, e o olhar dele era como um raio. “E aí, Clara? Estudou hoje ou tá só passeando?” O tom era brincalhão, mas tinha cobrança. Murmurei um “estudei, sim” e subi pro quarto, trancando a porta. Sentei na cama, o coração acelerado, e comecei a pensar. No Rafael, no jeito que ele me faz sentir pequena, mas protegida. No professor Eduardo, no que a Lívia disse. E, principalmente, em mim. No que eu tô disposta a fazer pra escapar dessa pressão. Pra provar que sou mais do que a menininha que todos acham.
Deitei na cama, o ventilador zumbindo, e fechei os olhos. Minha cabeça tava uma bagunça. O medo do castigo do Rafael, a curiosidade sobre o professor, a culpa por pensar nisso. Mas, no fundo, tinha um calor, uma vontade que eu não sabia nomear. E, pela primeira vez, me perguntei: e se eu jogasse o jogo? Não só pra passar de ano, mas pra... sentir algo que eu nunca senti.