Sempre fui obediente. Filha aplicada, recatada — como diziam as senhoras da igreja. Eu fingia não perceber os olhares dos rapazes na rua, os cochichos das colegas sobre beijos e carícias, como se falassem um idioma que eu ainda não tivesse aprendido. Mas, no fundo, algo se movia em mim, uma inquietação pequena e insistente, como o zumbido de uma lâmpada prestes a queimar.
Na garagem do prédio, havia um espaço que eu gostava de visitar sem motivo. Dizia a mim mesma que ia buscar algo no carro do meu pai, mas o que me chamava ali era outra coisa. No canto, entre colunas de cimento e o eco dos motores, repousava uma motocicleta vermelha reluzente — nova, quase viva. Pertencia a Adilson, o filho do síndico. Estudava medicina e passava por mim às vezes com aquele sorriso que não se sabia se era gentil ou perigoso. Eu desviava o olhar, mas o som do motor quando ele saía me atravessava o corpo inteiro.
Era estranho: eu não desejava Adilson. Desejava a moto. Ou talvez o que ela representava. Liberdade, risco, vento. Tudo o que a minha vida ainda não tinha sido.
Naquela noite, o calor era insuportável. A cidade parecia suspensa num torpor úmido. Meus pais dormiam, minha irmã respirava pesado no beliche de cima. Senti uma urgência sem nome, como se algo me chamasse lá de baixo. Desci as escadas devagar, com o coração batendo alto demais para o silêncio.
Quando cheguei à garagem, o ar estava parado, e a moto brilhava sob a luz amarela do poste que entrava pelas grades. Aproximei-me como quem se aproxima de um altar. Toquei o guidão, o assento, o metal frio. Tudo nela parecia pulsar. O couro escuro do banco guardava o calor do dia, e o contraste entre o frio do metal e o morno da superfície me fez prender o ar.
Sentei-me devagar, sentindo o peso do corpo ajustar-se ao da máquina. Era como se houvesse ali uma respiração que não era só minha. O silêncio se encheu de algo elétrico, uma vibração invisível que percorria minha pele. O ar parecia mais denso, e o simples fato de estar ali, sobre aquele corpo de aço, me fez sentir um tipo de poder que eu nunca havia experimentado. Resolvi tirar a roupa.
Fechei os olhos. O cheiro do óleo, o eco distante de um carro passando, o roçar do tecido contra o assento — tudo se misturava numa espécie de vertigem. Não havia palavras. Só uma sensação crescente de que eu estava prestes a cruzar uma fronteira, e que depois dela nada seria igual.
Um som me fez despertar: o portão se abrindo. Dois carros entraram, faróis cortando a escuridão. A luz me encontrou por um segundo, e o coração quase saiu pela boca. Recuo. Silêncio. Risadas distantes. O elevador subindo.
Quando tudo voltou à calma, percebi que tremia — não de medo, mas de algo mais fundo. Vesti a camisa larga que trazia comigo e subi as escadas em silêncio. A cada andar, sentia que deixava algo para trás — ou talvez trouxesse algo novo comigo.
No quarto, deitei-me sem sono. Minha irmã virava de lado, sonhando com coisas simples. Eu, não. O teto parecia se mover, como se respirasse junto comigo. E pela primeira vez, compreendi que o desejo não era um pecado, mas uma força que me lembrava que eu estava viva.
Quando o despertador tocou, o sol já entrava pelas frestas da cortina. Eu ainda sentia o cheiro do metal, o calor da noite anterior grudado na pele.
Olhei para o espelho, e a menina que vi ali parecia outra — ou talvez fosse, enfim, eu mesma.


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