Quando o mundo começou a se reorganizar, conheci quatro ciclistas que, aos poucos, se tornaram parceiros constantes. A convivência com eles abriu portas para algo maior e, em 2023, fui convidado a integrar um grupo de ciclismo, composto por homens, mulheres, casais, solteiras, divorciadas e até uma viúva.
Foi nesse grupo que reencontrei Paulo.
Ele ainda estava na ativa, oficial da Polícia Militar, agora, como Major, com 37 anos, ao lado de Ângela, sua esposa de 35, tão elegante quanto provocativa sobre a bicicleta. Tínhamos história, eu havia sido seu comandante quando ele era apenas 2° tenente no 1º Batalhão da capital. Assumi o comando do Primeiro Batalhão após deixar o cargo de diretor da maior Escola Militar do Estado.
Lembrava-me bem de como a ascensão de Paulo havia sido comentada na corporação. Alguns oficiais de sua turma, ainda segundos-tenentes, estranhavam sua promoção rápida ao posto de Capitão. Ouvi tudo aquilo sem me afetar eu não participava das avaliações e sabia que Paulo tinha talento. Era um jovem oficial dinâmico, de combate, com uma energia que sempre considerei rara. Não me surpreendeu vê-lo crescer.
Encontrá-lo agora no pedal, descontraído, seguro de si, reforçava minha percepção.
O grupo era diverso e cheio de personalidade. Havia os casais:
Ângela e Paulo;
Lígia e Henrique, o cardiologista;
Amanda e Sandro, o promotor.
Os homens solteiros ou independentes:
Rogério, professor de Educação Física, sempre animado;
Márcio, engenheiro civil, introspectivo;
Ricardo, advogado.
E as mulheres que davam cor e espontaneidade às pedaladas:
Helena, contabilista, divorciada e tranquila;
Renata, administradora, divorciada, provocadora;
Carolina, servidora do judiciário, solteira, namorando o bombeiro Bruno;
Bianca, analista de sistemas, namorando Renan, personal trainer;
Ana Cláudia, a viúva serena talvez a presença mais estável daquele grupo.
E eu, Coronel aposentado, terminando meus estágios na área da Educação Física e Psicologia, me vi no centro de uma dinâmica inesperada um cenário onde passado e presente se misturavam de maneira elegante e sutil.
Passei a frequentar a casa de Paulo, e ele ao meu apartamento. Jantares, almoços. Porém, sempre notei que, quando a minha esposa estava presente, os assuntos eram muito mais tranquilos. Mas, quando eu estava sozinho, as coisas mudavam completamente. Os assuntos e os olhares eram sempre de propósito com provocações.
Naquele sábado faríamos um pedal pesado, pois era um feriado prolongado. Como de costume, deixamos os carros no estacionamento em frente ao condomínio onde Paulo e Ângela moravam. Minha esposa não pôde ir, pois passaria o final de semana prolongado, na casa da nossa filha caçula, casada com o filho de Geraldo e Sueli (do conto As Amigas e Cunhadas da Minha Esposa). Assim, quem daria apoio seria o namorado de Carolina.
Ainda no início do percurso, notei que Ângela e sua prima Carolina pedalavam um pouco à frente, próximas demais uma da outra, rindo de algo que eu não ouvi. Havia algo quase ensaiado na forma como se movimentavam, pareciam sentir o efeito que causavam.
Paulo veio para o meu lado, acompanhando meu ritmo enquanto o restante do grupo avançava metros à frente. Ficamos nós quatro isolados: eu, Paulo, Ângela e Carolina.
Ele lançou um olhar irônico e disse, em tom de camaradagem:
Coronel com essas duas figuras abrindo a estrada, a gente vai longe hoje.
Respondi apenas com um gesto leve, confirmando que a cena à nossa frente não passava despercebida, e que Carolina era uma tentação.
Paulo sorriu, avaliando minha reação:
E a Ângela? O senhor não acha?
Isso me deixa meio constrangido, admiti.
Fique à vontade respondeu ele, tranquilo. Eu gosto de ouvir sinceridade. E admiro quem sabe olhar com elegância.
Aquilo era uma permissão, mas também um teste. Decidi ser honesto, sem exageros.
Sua esposa é uma mulher marcante, Paulo.
Ele assentiu, porém, não satisfeito.
Pô só isso Coronel.
O que gostaria de ouvir Paulo, o inquiri.
Que ela e muito gostosa, e sorriu.
Se isso irá lhe satisfazer, ok. Sua esposa e muito gostosa Paulo.
Agora sim, e sorriu.
Antes que a conversa avançasse, Ângela e Carolina diminuíram o ritmo, permitindo nossa aproximação. Ângela olhou para trás, rindo.
Cuidado, viu? Estamos ouvindo tudo.
Carolina completou.
Comentário demais pode fazer a gente acelerar.
Os quatro seguimos entre risos contidos, cada um entendendo, à sua maneira, os códigos silenciosos daquele pequeno bloco dentro do pedal.
Mais tarde, paramos para hidratação e descanso. A volta seria longa.
Enquanto eu bebia água, Ângela e Carolina algumas dezenas de metros adiante me observavam com olhares que combinavam brincadeira e curiosidade. Havia algo não dito ali, mas claro para todos os envolvidos.
Paulo se aproximou de mim com aquela calma calculada que sempre o acompanhara na farda. Ele olhou em volta, certificando-se de que ninguém escutava embora, ao mesmo tempo, não demonstrasse intenção alguma de esconder o sorriso irônico no canto da boca.
Coronel, disse ele, quase num sussurro.
Acho que preciso lhe confessar uma coisa.
Cruzei os braços, mais por hábito do que por defesa.
Diga.
Paulo respirou fundo, como quem saboreia o momento antes de revelá-lo.
Contei algumas histórias do tempo de Polícia para a Ângela.
Ele fez uma pausa curta.
E para a Carolina também, já que elas vivem comentando tudo uma com a outra.
Inclinei a cabeça, curioso.
Que tipo de histórias?
O sorriso dele se ampliou não debochado, mas conhecedor.
O senhor sabe como era o Batalhão.
Conversa vai, conversa vem, sempre surgem aquelas histórias antigas, exageradas ou não.
E ele riu baixo inclusive aquele seu apelido que circulava entre os oficiais.
Não respondi. Não precisava.
Paulo continuou.
Mandioca Bruta.
Disse o apelido sem cerimônia, mas com uma reverência quase brincalhona.
Era jocoso, sim mas chamava a atenção. O pessoal falava muito disso. E as duas.
Ele olhou na direção de Ângela e Carolina, que conversavam adiante, cada uma mexendo no seu garmin.
Ficaram curiosas. Curiosas de um jeito que não é difícil perceber.
Senti o peso das palavras mais pelo silêncio que veio depois.
Paulo completou, agora com voz mais baixa e firme.
Aliás não fui só eu quem percebeu.
Elas mesmas comentaram. Queriam saber se o apelido tinha fundamento.
Olhei para ele, avaliando o que havia por trás daquilo.
Mas Paulo não desviou o olhar.
Elas me perguntaram diretamente disse ele.
E eu respondi o que achava justo responder.
Eu apenas confirmei que o apelido não veio do nada.
Disse isso com uma naturalidade desconcertante.
Mais adiante, Ângela olhou para nós como se soubesse exatamente o que estava sendo dito.
Carolina, logo ao lado, fez o mesmo um olhar demorado, avaliador.
Foi então que Bruno se aproximou.
Coronel, chamou chega aqui um pouquinho.
Afastamo-nos.
Ele apontou discretamente para Ângela e Carolina.
Na volta, fica atrás das duas. Elas rendem melhor assim e o senhor é a referência ideal para manter o ritmo.
Sorri.
Olha que eu posso gostar de ficar atrás delas demais e você acabar com ciúmes.
Bruno riu, firme.
Nada disso. Eu e o Major Paulo também não carregamos esses ciúmes bobos. A gente sabe quem tem ao lado.
Depois, aproximou-se ainda mais, num tom confidencial.
Eu gosto de homens que sabem olhar sem exagerar. Poucos conseguem. Pode olhar para a Carolina sem problema. Eu curto.
Certo, respondi.
Só lembra, ele sorriu, segredo ok.
Assenti.
Era um entendimento silencioso entre homens adultos, seguros, conscientes das próprias escolhas e relações.
Na saída, cumpri o combinado, posicionei-me atrás de Ângela e Carolina. As duas assumiram o ritmo com naturalidade, como se já esperassem por isso. Bruno vinha no carro de apoio logo atrás, atento.
De tempos em tempos, as duas se levantavam para pedalar em pé, com força sincronizada, quase performática. Uma vez, virei discretamente para trás, Bruno batia palmas dentro do carro, aprovando a cena. Era como se todos estivéssemos participando de um jogo elegante, silencioso, em que ninguém ultrapassava limites, mas todos entendiam a tensão no ar.
Quando chegamos ao estacionamento do condomínio, já exaustos, Paulo reuniu parte do grupo. Conversou com Ângela, com Bruno, com Carolina.
Depois, ergueu a voz.
Pessoal depois desse pedal maravilhoso, quero fazer um convite. Churrasco agora, aqui em casa. Do jeito que estamos, sem passar em casa.
A maioria recusou cansaço, compromissos, preguiça. Mas alguns aceitaram.
Bruno e Carolina ficaram imediatamente.
A outra solteira topou.
Um dos quatro ciclistas que conheci no início e me apresentaram ao grupo também.
Uma das divorciadas levantou a mão.
E, naturalmente, eu aceitei.
Um grupo pequeno, mas suficiente para que aquela tarde seguisse por caminhos que eu não poderia prever.
E, ao que tudo indicava, o verdadeiro início da história começaria ali, na casa de Paulo.
Chegamos à casa de Paulo e Ângela, apenas os que haviam aceitado o convite no estacionamento. A entrada lateral dava acesso direto à área gourmet, ampla, bem planejada, com aquele toque pessoal que revelava muito sobre o casal, organização, acolhimento e um certo bom gosto pelo ritual de receber.
Seguimos até a churrasqueira. Paulo, como bom anfitrião, já surgiu com garrafas de cerveja gelada, distribuindo-as com naturalidade. Assim que todos se acomodaram nos bancos de madeira ao redor da mesa, ele ergueu o copo.
Ao pedal de hoje disse, com aquele sorriso fácil e a quem ficou para aproveitar a tarde.
Brindamos.
Enquanto conversávamos, percebi algo sutil. Paulo, sempre atencioso a tudo e a todos, observava com curiosidade discreta, mas não disfarçada o modo como a minha roupa de ciclismo marcava o volume do meu kct. Não era vulgar; era um tipo de leitura silenciosa, de quem sabe analisar presença, postura, corpo, comportamento.
Em alguns momentos, ele fazia um comentário leve com Ângela, chamando sua atenção para o detalhe do volume e ela, com aquele sorriso cheio de intenção, acompanhava o olhar dele. Carolina, a namorada de Bruno, também captava esses sinais e parecia achar graça da situação, trocando olhares cúmplices com Ângela.
Era evidente que Paulo queria que Ângela observasse aquilo que ele via. E que Ângela, por sua vez, se divertia com a situação assim como Carolina, mais espontânea, que ria a cada troca de olhares silenciosa entre eles.
Eu percebia tudo, mas me mantinha na postura serena de sempre conversando com Ricardo sobre o pedal, sobre os treinos, sobre trajetos e técnicas. Apenas atento aos movimentos ao redor, como quem lê um ambiente sem precisar se posicionar verbalmente sobre ele.
Foi chegando perto do meio dia, então Ricardo, disse que iria embora, Renata a divorciada, também aproveitou a deixa e disse que já estava indo. Paulo então esperou os dois se despedirem e, discretamente, me pediu para conversarmos.
Ficamos ali, de lado, apenas eu, ele e Bruno.
Ângela, Carolina e Bianca a outra solteira ficaram um pouco afastadas, como se nos desse espaço para aquele momento.
Coronel disse Paulo, com aquele tom tranquilo e controlado que tal ficarmos aqui em casa curtindo uma cerveja e assando uma carne?
Tranquilo, Paulo da minha parte de boa, eu respondi.
Legal, vamos acender a churrasqueira então.
Meninas, vamos continuar com um churrasco e a cerveja.
Ângela então tomou frente e disse, vamos entrar na piscina, Paulinho. Pega um short teu para o Coronel e o Bruno. Que eu empresto algo para as meninas.
Paulo nos forneceu um short para cada um de nos. Entramos na piscina e ficamos aguardando a chegada das mulheres.
Ângela veio primeiro. Shortinho claro, quase branco, que deixava a luz da área externa atravessar o tecido de um jeito que não era acidental. A parte de cima do biquíni desenhava um contraste elegante com a pele bronzeada. Ela caminhava devagar não por timidez, mas porque sabia exatamente o efeito que causava.
Carolina e Bianca vieram logo atrás, tão à vontade quanto a anfitriã, mas com um brilho diferente no olhar, menos calculado, mais instintivo.
Paulo abriu um sorriso discreto.
Vocês demoraram, disse ele.
A gente escolheu com cuidado, respondeu Ângela, ajeitando o cabelo para trás.
Bruno riu, tentando disfarçar o nervosismo enquanto se ajeitava na água. Eu apenas permaneci onde estava, sentindo o contraste da água fria com o calor crescente do ambiente.
Quando as três finalmente se aproximaram da beira da piscina, Ângela se abaixou, apoiando um joelho no chão. Olhou para mim por alguns segundos demorados demais para serem casuais.
Coronel, o senhor vai ficar só aí? Faz um favor saia e pegue uma cerveja para nos três.
Carolina encostou no ombro da prima, mirando primeiro Paulo, depois a mim.
Eu sai e peguei as cervejas, mas depois dos olhares eu entendi o pedido, kkkk. O olhar delas era diferente. Avaliador. Como se entendesse o que exatamente acontecia ali e talvez gostasse do que descobririam.
Paulo não disse nada.
Apenas observou, sereno, como quem acompanha um jogo cujo desfecho já conhece.
Ângela então deslizou os pés para dentro da água e, antes de entrar, murmurou.
Já que estamos entre amigos, vamos relaxar de verdade.
E, pela primeira vez naquela tarde, senti claramente que o pedal havia sido apenas o prelúdio. O que realmente havia começado ali era outra dinâmica. Algo que não cabia em palavras mas se fazia presente em cada silêncio.
Foi então que Ângela jogou a frase no ar leve, mas afiada.
Coronel, o Paulinho disse que o senhor tinha um apelido interno no grupo de oficiais, quando ele entrou. Ele disse que o senhor era famoso por esse apelido. É verdade?
Olhei para Paulo antes de responder. Ele sorriu, aquele sorriso dele tranquilo, calculado, quase cínico.
São boatos falsos respondi, devolvendo o sorriso.
Ângela inclinou a cabeça, como quem escuta mas não acredita. Carolina ergueu uma sobrancelha, interessada. Bianca, ficou apenas me olhando.
Foi Paulo quem tomou a palavra então, com o mesmo tom neutro de sempre, só que carregado de intenção.
O Coronel sempre foi muito discreto. Ele fez uma pausa curta, o suficiente para criar suspense. Lembra da Capitã Lílian? Aquela dos olhos verdes, largou do marido na época.
Ângela abriu um sorriso lento.
Por causa dele? perguntou, quase sussurrando.
Paulo só ergueu os ombros, como quem confirma sem afirmar. Ela pessoalmente me disse que, não conseguia esconder mais para o marido o que sentia pelo Coronel, e soltou uma risada.
Bruno então entrou na conversa, dizendo, Amor de pica, onde bate fica, e sorriu.
Todos caíram nas gargalhadas.
Bianca, me olhou e perguntou, então qual era o apelido do Coronel, na época, alguém pode dizer?
Carolina se adiantou e antes de dizer, pediu permissão a mim e ao seu namorado.
Bruno reagiu, se sabe pode, contar.
Carolina respondeu que sim, Paulo havia contado a Ângela e a ela. Posso contar Coronel, e me olhou.
Pode, e olhei para Bianca, mas é apenas folclore e estórias no tempo da farda.
O apelido era mandioca bruta? E completou com um gesto provocativo, com as mãos (seria grande e grosso), o suficiente para deixar silêncio no ar.
Balancei a cabeça, sorrindo.
Isso foi folclore.
Paulo continuou, como se estivesse apenas enumerando fatos sem importância.
E a mulherada do tempo que o senhor foi diretor da Escola Militar. Muito comentário, muito interesse.
Também folclore repeti, mantendo o tom leve, mas sentindo o peso das atenções convergindo sobre mim.
Ângela aproximou-se um pouco mais, a água subindo até seu peito, o short grudando na pele. Ela não tocou em mim não ainda mas o espaço entre nós ficou reduzido a quase nada.
Coronel disse ela, com aquela calma provocadora. Folclore costuma nascer de alguma verdade.
Carolina sorriu ao ouvir isso. Bianca riu da situação. Bruno riu do reconhecimento.
Paulo permaneceu imóvel, apenas observando, o que ele havia produzido.
O silêncio incomum tomou conta do ambiente. E foi ali, naquele instante sutil, que todas as histórias antigas verdadeiras ou não deixaram de ser apenas lembranças. Elas se tornaram contexto.
rob025