A única mudança notável na pacata Rua das Acácias, onde Matheus morava há vinte anos, havia sido a chegada de Diana Muller, a nova vizinha do 12B. A mudança tinha sido há duas semanas, marcada por caixas de papelão cinzentas e o ruído abafado de música clássica que saía da casa dela durante a noite. Diana era jovem, talvez trinta e poucos, com um cabelo preto liso que lhe caía quase até a cintura. Ela era discreta, mas a aura de novidade e algo mais que ela trazia era um contraste gritante com o marasmo de Matheus.
Matheus, na sua eterna solidão, tinha pego a mania de observar a vizinha pela janela da cozinha, sempre disfarçando com o ato de regar um cacto ressecado. Ele só tinha visto o nome completo dela uma vez, escrito em letras impecáveis na etiqueta de uma daquelas caixas de mudança que, por um descuido, tinham rasgado na borda: Diana Muller.
Numa terça-feira chuvosa, sem corridas, o tédio de Matheus atingiu o ápice. Ele decidiu, por impulso, que iria arrumar o porão que jazia intocado desde que a casa era de sua mãe. O lugar era um labirinto de teias de aranha e cheiro de mofo, iluminado apenas por uma lâmpada fraca pendurada em um fio.
Ele lutou contra a umidade e a bagunça, empurrando velhas caixas de Natal e cobertores embolorados. Foi então que, encaixado entre dois tijolos soltos da parede de fundos, ele viu. Não era uma caixa, nem um objeto velho da família. Era um diário.
Matheus o puxou com cautela. A peça era incomum. A capa, de um couro marrom escuro e incrivelmente macio, era delicada, como se tivesse sido costurada à mão. No centro, gravado em alto relevo, ele identificou o desenho de um Brasão — complexo, com galhos entrelaçados e um pássaro em voo. Abaixo do brasão, as iniciais, também em baixo relevo, reluziam: D. M.
O coração de Matheus deu um salto, quebrando a lentidão de cinquenta anos de rotina. D. M. Diana Muller. Não podia ser uma coincidência. Aquele diário, tão íntimo, pertencia à misteriosa vizinha que ele mal conhecia. Ele sentiu o calor do corpo dele subir, um calor que não vinha do esforço de limpar o porão, mas da adrenalina.
Matheus não hesitou. Ele limpou o diário com a manga da camisa, subiu as escadas ignorando a dor nas costas e se sentou na poltrona velha da sala. O ruído da chuva lá fora desapareceu. Ele abriu a capa de couro suave, sentindo o cheiro de papel envelhecido e, surpreendentemente, um leve toque de baunilha.
As páginas internas estavam escritas em uma caligrafia fina e elegante. Ele saltou as primeiras entradas sobre o estresse da mudança. Seu olhar correu, faminto por algo que justificasse sua invasão.
(5 Votos eu coloco a segunda parte)