Naquela mesma noite, assim que a sombra de Matheus desapareceu no andar de baixo e o silêncio voltou a reinar na casa, Clara pegou o celular. Deletou o perfil. Apagou o aplicativo. Formatou o histórico. Esfregou o parapeito da janela com água sanitária, como se o cheiro de cloro pudesse esterilizar o erro que cometera.
— Nunca mais — prometeu ela, trocando os lençóis da cama com as mãos trêmulas.
Os três dias seguintes foram de uma normalidade forçada e frágil. Clara tornou-se a mãe perfeita. Fez o estrogonofe que Lucas adorava, ouviu as histórias dele sobre o hospital, dobrou turno na loja. Lucas parecia ter acreditado na história da enxaqueca, e o susto passara.
Mas a paz era uma mentira.
Na manhã de sexta-feira, Clara estava no estoque da loja, conferindo notas fiscais. O celular vibrou sobre a mesa. Uma sequência longa e insistente.
Número desconhecido. Sem foto.
Ao desbloquear a tela, uma mensagem de vídeo carregada no WhatsApp. A miniatura mostrava algo escuro, iluminado apenas por uma fresta de luz azulada.
O coração de Clara falhou. Ela clicou no play.
A imagem era estática, filmada de um ângulo levemente elevado, sobre a escrivaninha do quarto dela. Clara reconheceu imediatamente o enquadramento: era a visão da webcam do seu notebook pessoal. O vídeo mostrava a cama. Mostrava Clara e Matheus.
O áudio captava a respiração ofegante, os sussurros. Mas o que gelou o sangue de Clara não foi apenas o ato. Foi a expressão de Matheus. No vídeo, o garoto parecia completamente entregue, de olhos fechados. Ele não olhava para a câmera. Ele não sabia. Ele era tão vítima quanto ela.
O vídeo terminou com Clara empurrando Matheus para o banheiro.
Clara largou o celular, sentindo uma tontura violenta. Alguém tinha hackeado seu computador. Alguém estivera dentro do quarto dela, digitalmente, assistindo a tudo.
Uma nova mensagem de texto surgiu na tela:
"O garoto tem energia, hein? Pena que ele não sabia que estava sendo transmitido. E você devia tomar mais cuidado com a segurança do seu PC, mamãe. Seria trágico se esse vídeo chegasse no e-mail da coordenação do curso de Medicina do seu filho. Eu tenho a lista de contatos."
Clara sentiu o ar sumir.
"O que você quer?", ela perguntou, trêmula.
"R$ 15.000,00. Em Bitcoin. Até segunda-feira, meio-dia. Se tentar ir à polícia, o vídeo vaza automaticamente. O relógio está correndo, Clara."
Quinze mil reais. Bitcoin.
Clara olhou para as caixas de papelão ao seu redor. O pânico inicial deu lugar a uma frieza súbita. Ela não entendia de criptomoedas. Se tentasse criar contas agora, demoraria dias para verificar, comprar, transferir. Ela não tinha esse tempo. Mas ela tinha algo que o mundo digital não podia bloquear.
Ela abriu o aplicativo do banco. Saldo da poupança: R$ 2.150,00. Era tudo o que tinha. Mas ela também tinha um maço de dinheiro vivo em casa, guardado no fundo falso da caixa de sapatos — sobras dos pagamentos de André e Gabriel. Cerca de mil reais em notas.
Total: Três mil reais.
Ela respirou fundo. O hacker estava escondido atrás de uma tela. Seguro. Intocável. Se ela mandasse o dinheiro digitalmente, ele continuaria sendo um fantasma. Ela precisava ver o rosto dele. Ou, pelo menos, trazê-lo para o mundo real, onde ela podia lutar.
Ela começou a digitar:
"Eu não tenho Bitcoin. Não sei mexer com isso e não vou aprender em 48 horas. Se você quer dinheiro, vai ter que ser do meu jeito."
A resposta demorou, desconfiada: "Não complique, Clara. Todo mundo sabe usar uma exchange."
"Eu não sei. E não tenho 15 mil agora. Tenho R$ 2.000,00 em dinheiro vivo. Notas de cem e cinquenta. Estão comigo. É pegar ou largar."
"Dois mil é pouco. E eu não vou te encontrar. Transfira."
Clara sentiu a adrenalina pulsar. Ele estava hesitando. "É o que eu tenho hoje. O resto eu pago em 15 dias. Mas os 2 mil estão aqui, na minha mão. Se quiser, venha buscar. Se não quiser, vaze o vídeo. Mas saiba que eu não tenho nada a perder além da vergonha. Você perde o dinheiro."
O silêncio do outro lado durou dois minutos intermináveis. Clara imaginou o chantagista do outro lado: ganância versus segurança.
Finalmente, a mensagem chegou: "Você está em casa?"
"Estou indo para lá agora. Lucas só chega à noite. A casa está vazia. Deixo o dinheiro na portaria ou você sobe. Você escolhe."
"Eu subo. Deixe a porta destrancada. Daqui a 40 minutos. Se tiver polícia, o vídeo sobe na hora."
"Sem polícia. Só eu, você e o dinheiro."
Clara bloqueou o celular. Suas mãos não tremiam mais. Elas estavam fechadas em punhos.
Ela saiu da loja apressada, avisando à funcionária que tinha uma emergência médica.
No táxi para casa, Clara não pensava no vídeo. Pensava na faca de chef que mantinha no bloco de madeira na cozinha. Pensava no spray de pimenta que comprara anos atrás e nunca usara.
Ela estava convidando o demônio para entrar, sim. Mas "Vera" tinha lidado com homens perigosos antes. Clara Aguiar ia proteger seu filho, e se para isso ela precisasse encarar o chantagista olho no olho, ela o faria.
Ela chegou em casa, foi até o quarto, pegou o dinheiro no fundo falso e juntou com o que sacou no caixa eletrônico no caminho. Colocou o maço de notas sobre a mesa de centro da sala.
Foi até a cozinha. Pegou a faca maior. Olhou para o metal afiado. Hesitou. Escondeu a faca sob a almofada do sofá, bem ao alcance da mão.
Destrancou a porta. Sentou-se no sofá, de frente para a entrada. E esperou.
Trinta e nove minutos depois, o interfone não tocou. A maçaneta da porta girou devagar.
Clara prendeu a respiração. A porta se abriu.