Depois de jogar as notas de mil reais na mão de Helena e sair do quarto, ela agiu como se o confronto não tivesse existido. Era uma tática antiga: extinguir o problema com a força da negação, forçando Helena a ser a única a carregar o peso da memória e da moralidade.
Helena, por sua vez, tentou desesperadamente retomar a rotina. Ela pagou o aluguel online, sentindo-se suja. O dinheiro parecia ter um peso diferente, uma textura oleosa, manchada pela mentira.
No final da tarde, a ansiedade de Helena atingiu um pico insuportável. Sofia deveria estar em casa, mas o apartamento estava em um silêncio opressor. Ela estava fora há horas.
Helena foi para a suíte da irmã. A porta, agora, estava apenas encostada.
Ela entrou lentamente. O cheiro de incenso ainda pairava, mas agora estava misturado a um perfume floral forte, quase excessivo. Helena sentiu o mesmo calafrio da manhã.
O quarto de Sofia era um reflexo de sua mente: um caos criativo e sensual. Sobre a cama desfeita, havia um body de renda preta e uma meia-calça jogados de qualquer jeito, ao lado de um pincel de maquiagem esquecido. Um cavalete de madeira, no canto, tinha uma tela inacabada que, em vez de arte abstrata, parecia agora um disfarce para algo mais mundano.
Helena sentou-se na beirada da cama, sentindo o calor residual do lençol. Ali, longe da rigidez do seu próprio quarto, ela se permitia respirar o ar da irmã. O ar da liberdade, da irresponsabilidade, do desejo.
Em cima da cômoda, havia uma caixinha de joias aberta. Não a joia artesanal que ela havia imaginado pela manhã, mas um pequeno estojo de veludo preto. Dentro, um pingente delicado de ouro e, embaixo, um cartão de visitas.
O papel era liso, preto fosco, minimalista.
Diana Alves
Curadoria de Imagem & Arte
(11) 9 XXXX-XXXX
Helena sentiu um arrepio. Curadoria de Imagem. Não "Fotógrafa". O eufemismo era quase mais revelador do que a verdade nua.
Ela deslizou o cartão entre os dedos, sentindo a textura do papel. Era o elo, a ponta do novelo que a ligava ao mundo secreto de Sofia. O mundo onde R$ 1000,00 surgiam magicamente.
O pânico voltou, mas desta vez, não era o medo de ser despejada; era o medo da curiosidade. O medo de ser exatamente como a irmã.
Helena guardou o cartão no bolso do roupão. Decisão tomada. Ela iria confrontar Sofia, exigir que ela cortasse qualquer laço com aquela mulher e aquele "trabalho".
Mas a porta se abriu antes que ela pudesse sair.
Sofia estava de volta.
Ela estava deslumbrante. Um vestido justo de seda, vermelho sangue, mal chegava aos joelhos. O cabelo loiro solto em ondas calculadas, e o perfume (o mesmo cheiro forte do quarto) parecia irradiar poder. Ela estava acompanhada por uma mulher alta, de cabelos curtos e casaco de couro – a mesma de manhã. Diana.
O olhar de Sofia endureceu ao ver Helena em seu quarto, sentada em sua cama, o pijama de flanela contrastando cruelmente com a seda e o couro das visitantes.
“O que você está fazendo aqui, Hél?” A voz de Sofia era baixa, mas carregada. Não havia mais vergonha, apenas irritação.
Diana deu um sorriso de escárnio, os olhos azuis analisando Helena da cabeça aos pés, como se ela fosse uma peça de museu barata.
“Ah, a gêmea responsável,” Diana comentou, o sotaque paulistano arrastado.
“Eu estava esperando por você, Sofia,” Helena se levantou, tentando parecer a adulta da situação. “Precisamos conversar sobre o que aconteceu de manhã. E sobre… isso.” Ela gesticulou para o vestido e para Diana.
Sofia fechou a porta. “Não há nada para conversar, Helena. O aluguel foi pago. Fim.”
“Não! Você não pode simplesmente—”
Sofia a interrompeu, a voz explodindo em um sussurro furioso: “Eu posso! Você acha que é fácil morar nessa gaiola, Hél? Viver de conta de banco e planilha? Eu te salvei! Eu mantive o seu sonho de ‘estabilidade’ vivo! E qual é o seu agradecimento? Invadir a minha privacidade e me julgar?”
Ela deu um passo à frente, diminuindo a distância entre elas. O perfume de Sofia e a energia de Diana, parada atrás dela, cercavam Helena.
“Escuta aqui, e escute bem,” Sofia disse, a voz quase um rosnado. “Essa é a nova regra: O que eu faço, com quem eu durmo, e o dinheiro que eu trago para essa casa, não é da sua conta. Se você tentar me controlar de novo, ou se você sequer mencionar a palavra ‘pai’ ou ‘voltar’, eu sumo. E o apartamento vai ser todo seu, para você pagar sozinha. Entendeu?”
Helena engoliu em seco. Não era só a ameaça de ficar sem o aluguel; era a ameaça de ficar sem a irmã. De falhar sozinha.
Ela olhou para Diana, que observava a cena com um divertimento quase cruel. A cumplicidade das duas era palpável.
“Eu entendi,” Helena sussurrou, sentindo-se humilhada.
Sofia sorriu, um sorriso pequeno e vitorioso, e se virou para Diana, que a esperava com um brilho no olhar.
“Ótimo. Agora, a gente tem que ir. Diana tem uns lugares para me levar.”
As duas saíram, e Helena ficou para trás, no quarto da irmã, sozinha com o cheiro da liberdade e o vazio em seu estômago. Ela apertou o cartão de Diana no bolso. O jogo tinha começado.