CAPITULO 1
A luz da manhã na sala de jantar era cirúrgica. Entrava pelos janelões, mas só servia para expor o brilho artificial da mesa de ébano. Não aquecia nada.
O café da manhã era um briefing.
Maria, aos dezessete, mantinha os olhos pregados no feed, mexendo o café devagar, como se medir o açúcar fosse uma tarefa crítica. Ela sabia a regra: a inação era sua melhor defesa. Se você não se movesse, não poderia cometer um erro.
Sua mãe, Lúcia, estava lendo, claro. O Valor Econômico era seu café. Impecável, zero defeitos, vestida antes das sete da manhã como se fosse a fusão de duas multinacionais.
“Seu orientador me enviou o relatório de desempenho de ontem,” disparou o pai, Carlos. A voz dele era de algoritmo: eficiente, sem emoção, letal. “Você está cinco pontos abaixo da média na simulação de Engenharia, Jorge.”
Jorge, de dezenove, largou o garfo. O barulho foi alto demais para aquela casa. Ele era maior que Maria, mas o silêncio do pai o fazia encolher. “Pai, foi na interpretação de dados. O foco não fazia sentido, era uma questão puramente…”
Lúcia cortou, sem erguer os olhos. O silêncio que ela impunha era uma arma branca. “Jorge, aqui não se questiona o foco. Você se encaixa no exigido. Ser teimoso é uma falha de caráter. Não de inteligência.”
Maria sentiu a bile subir. Era sempre a mesma coisa. A vida deles era um currículo para ser preenchido, e eles eram obrigados a sorrir no final. O afeto era só a promessa de uma herança.
Carlos encarou o filho. Não era ódio. Era pior: era a total ausência de perdão.
“Não seja uma variável fora de controle, Jorge. Não arrisque a marca da família.”
A frase era o lema da casa.
Quando os pais sumiram—o Pai no sedan preto, a Mãe em seu compromisso de galerista—o ar finalmente ficou respirável, mas frio.
Maria foi para a cozinha, fez mais café e estendeu a caneca para Jorge. Eles eram a resistência clandestina na própria casa.
“Cinco pontos. Vão nos vender para cobrir o prejuízo,” Maria murmurou, sarcástica.
Jorge encostou a nuca no mármore gelado. “Não são os pontos, Maria. É a autorização para sermos imperfeitos.” Ele deu um gole na cerveja que tirou de onde ninguém olhava. “Eles querem que a gente seja de plástico, igual a essa merda de casa.”
Maria concordou. A casa, com seu design impecável e suas paredes grossas, não era um lar. Era um cofre. E tudo lá dentro era precioso, exceto eles.
“A gente precisa de alguma coisa que seja bagunça,” Maria disse, a voz quase um sussurro. A necessidade era palpável. “Alguma coisa que não tenha planilha. Alguma coisa… selvagem.”
Jorge a olhou, o cansaço dando lugar a algo mais perigoso nos olhos. Eles estavam sufocando na perfeição. Eles precisavam de ar, de verdade, de fogo.
Eles precisavam de algo que rasgasse a seda e o controle, algo que provasse que seus pais não eram apenas robôs, mas humanos falhos com segredos.
A casa era projetada para o sono profundo. Portas maciças, janelas antirruído. Quando o sol se punha, o cofre selava o silêncio. Era uma paz pesada, quase sufocante.
Jorge não conseguia dormir. Sua mente rodava o relatório do pai: variável fora de controle. Ele se levantou, a garganta seca. Precisava de água. E de ar.
O corredor principal era longo, iluminado apenas pela luz de segurança no rodapé. Ele passava de raspão pelo quarto dos pais, um santuário inviolável, quando parou.
Não era um som alto, mas era um som que não existia naquela casa: um arrastar. Não era um móvel. Parecia… esforço.
Jorge parou, o pulso acelerando. O que quer que fosse, era proibido. Ele estava prestes a seguir em frente, assumindo que era o vento, quando ouviu de novo. Um som abafado, quase um gemido, mas rouco, forçado. Não parecia prazer. Parecia luta.
Ele se aproximou da porta. A madeira era grossa, mas havia uma pequena grade de ventilação, estrategicamente colocada perto do chão, voltada para o corredor.
Jorge se ajoelhou no carpete frio. Colou o ouvido na grade. A respiração. Era pesada, rítmica. E então, ele ouviu a voz da Mãe. Lúcia. Não o tom de balanço financeiro, mas algo gutural, quase um latido, seguido por um som metálico e um grito reprimido.
Jorge não aguentou. Olhou através da fina trama da grade. O ângulo era terrível. Ele só conseguia ver um pedaço do chão de carvalho e a lateral da cama. Mas viu movimento. Forte, rápido, quase violento. E viu algo jogado no chão: a gravata de seda do Pai. Amassada, jogada sem o menor respeito.
A cena era real. Desorganizada. Humana.
Jorge deu um passo para trás, o estômago revirado, mas o corpo quente. Ele não sentia nojo. Sentia descoberta.
Ele deu meia volta e correu. Não para o próprio quarto, mas para o quarto ao lado. Abriu a porta de Maria sem bater.
Ela estava deitada, enrolada no lençol. Abriu os olhos, irritada.
“Qual é a tua?” ela sussurrou, a voz ainda rouca de sono.
Jorge não respondeu. Apenas agarrou o pulso dela, o toque áspero e urgente.
“Vem,” ele ofegou. “Você precisa ver. É… é a Mãe e o Pai. Eles… não são eles.”
O olhar de Maria, inicialmente sonolento, se tornou afiado. Ela percebeu o tremor na mão dele. O medo não era o que a atraía, mas a adrenalina. A promessa de algo não calculado.
Ela se levantou da cama, o corpo leve na escuridão, e deixou que o irmão a arrastasse pelo corredor, a cumplicidade silenciosa já selada. Eles se ajoelharam juntos, lado a lado, sobre o carpete frio, colando seus ouvidos e olhos na pequena grade.
Ajustaram os olhos e os ouvidos à grade. O cheiro de tabaco e suor, um odor proibido naquela casa, começou a vazar pela abertura.
O ângulo era limitado, mas o suficiente para quebrar a imagem de Lúcia e Carlos para sempre.
Lá dentro, Lúcia estava de costas para eles. O vestido de seda que usara no coquetel da galeria estava amassado no chão. Sua voz, a voz do “tom de balanço financeiro,” agora era uma súplica baixa e ofegante, quase irreconhecível. Ela estava presa ao Pai, seus braços segurando-o com uma força desesperada.
O Pai. Carlos. Sua postura de CEO estava desfeita. Ele não falava; ele rosnava. Seus movimentos eram fortes, apressados. O rosto, visível por um instante no reflexo distorcido de um espelho lateral, estava contorcido em uma máscara de poder e fúria contida.
A cena não era bonita nem romântica. Era caótica. Era a explosão reprimida de todo o tédio e controle diurno. Eles não faziam amor; eles desfaziam o controle um do outro.
Maria sentiu um arrepio que não tinha nada a ver com o chão frio. Aquilo era o que ela chamava de "real". Uma força bruta que a perfeição de mármore e vidro daquela casa tentava esconder. Sua mente pragmática começou a catalogar: Essa é a verdade. Esse é o segredo que faz o Dia funcionar. Ela se sentiu uma cientista observando uma reação química proibida. E era eletrizante.
Jorge estava mais perto da grade. Ele observava a Mãe. Ele buscava a conexão, o afeto, mas só via a necessidade. O jeito que a mão dela agarrava o lençol parecia mais um pedido de ajuda do que de prazer. Mas, à medida que a intensidade crescia, o medo de Jorge se dissolvia. No lugar dele, nascia uma excitação lenta, quase culpada. Não pelo ato em si, mas pela intimidade do segredo. Ele estava vendo o que era proibido, e o mero fato de estar ali com Maria, respirando o mesmo ar viciado do corredor, era um pico de adrenalina.
Ele tocou o braço de Maria. Um toque leve, cúmplice. Ela não olhou para ele, os olhos fixos na fresta.
Quando o momento atingiu o clímax, foi uma onda de sons abafados e, em seguida, um silêncio abrupto. Um silêncio diferente do silêncio diurno. Este era pesado, cheio de respiração. O cheiro de suor e sexo era agora mais forte, pairando como uma confissão no ar.
Maria e Jorge continuaram ajoelhados. Por um minuto inteiro, a única coisa que eles ouviram foi a respiração regulando.
Então, eles ouviram a voz do Pai. Era baixa, voltando ao "tom de balanço financeiro", mas cansada.
“Lúcia. Vista-se.”
E a Mãe, Lúcia, respondeu com a mesma voz robótica de sempre: “Claro, Carlos. Tenho o leilão amanhã.”
O portal se fechou. A anarquia durou dez minutos, e agora eles eram novamente o casal que se preocupava com o leilão e as ações.
Maria recuou, tirando o olho da fresta. Ela se levantou, mas não olhou para Jorge imediatamente.
“Viu só?” ela sussurrou, a voz seca de excitação. “Eles não são de plástico.”
Jorge se levantou devagar. Ele estava processando. A verdade não era bonita, mas era a única coisa viva naquela casa.
“A gente tem que… tem que fazer isso de novo,” ele disse, a voz baixa e tensa, mas não hesitante. O fascínio havia vencido a cautela.
Maria sorriu no escuro. Um sorriso de quem acaba de encontrar um mapa de tesouro.
“Eu sei. Agora a gente sabe o que procurar. E o que esperar.”
O pacto estava selado, não com palavras, mas com o silêncio compartilhado daquele corredor escuro. Eles voltaram para os quartos, mas sabiam que não iriam mais dormir. O segredo era uma chama. E eles eram o combustível.