Jessi nesse momento, sente que todos somem, e volta ao passado…
O cheiro de mofo e sangue era o que mais lembrava. O barraco na favela do Jatobá estava escuro, iluminado apenas pelos faróis das viaturas. A operação era para ser simples: apreensão de um carregamento de armas. A informação era boa. Tinham cercado o local, entrado com tudo. Mas não havia armas. Só um homem assustado, de meia-idade, e sua filha adolescente, encolhidos no canto, com as mãos na cabeça.
"Cadê o negócio, seu Zé?" o Capitão Assunção gritou, enfiando o cano do fuzil no queixo do homem.
"Não tem nada, seu doutor, juro! É invenção dos meus inimigos!"
Jessi segurava sua arma, o coração batendo forte. Algo estava muito errado. Ela conhecia aquele homem. Era o pai de uma amiga de infância da sua irmã. Era um pacificador, não um traficante.
Foi quando um dos PMs, o Cabo Silva, o braço direito de Assunção, "achou" um pacote de cocaína atrás de um armário velho. Jessi viu ele colocando lá, com a agilidade de um mágico de má-fé. Era a armação clássica. Plantar a prova, prender o inocente, aparecer na TV como herói.
"Aqui, Capitão! Tá vendo? O sujeito é um perigo."
O homem, seu Zé, começou a chorar. "Isso não é meu, eu juro por Deus!"
O olhar de Assunção passou por todos da equipe, parando em Jessi. Era um olhar de aviso. "Alguém tem algo a dizer?"
O silêncio foi a sua resposta. A conivência. A cumplicidade no crime. Jessi sentiu o estômago embrulhar. Ela podia denunciar. Podia estragar a farsa ali mesmo. Mas então ela pensou na sua irmã, Lara, naquela cadeira de rodas, dependendo do seu salário, do seu plano de saúde. Denunciar um capitão corrupto era assinar sua demissão, ou coisa pior.
Ela engoliu seco e desviou o olhar. Foi sua sentença.
No dia seguinte, a notícia correu o batalhão. O "perigoso traficante" tinha se enforcado na cela. Não suportou a vergonha. A filha dele, a amiga de Lara, sumiu da cidade. E Jessi foi chamada na sala do capitão.
"Você é uma policial promissora, Monteiro. Tem futuro." Assunção colocou um envelope gordo em cima da mesa. "É a sua parte do bônus da operação."
Ela não tocou no dinheiro. "Ele se matou, Capitão."
"Problema dele. O mundo tá mais limpo. Agora, pega essa merda e some. E lembra: sua palavra contra a minha. Quem você acha que vão acreditar?"
Uma semana depois, Jessi foi expulsa da corporação. Acusações de insubordinação e de se apropriar de dinheiro de apreensões. Foi o jeito deles de se protegerem. Ela tinha sido o bode expiatório perfeita: honesta demais para ser cúmplice, mas fraca demais para ser uma heroína.
Uma voz tira ela do transe…
— Jessi?
Era Rita de novo, sua voz um sussurro preocupado. Jessi percebeu que estava com os punhos cerrados, as unhas cravadas nas palmas das mãos.
Bela observava a cena, seus olhos analíticos captando cada microexpressão. "Fantasmas do passado atrapalham a visão do futuro, Jessi. Enterre-os."
Jessi respirou fundo, soltando o ar aos poucos. O rosto de seu Zé ainda estava lá, nos seus olhos.
— Eu não enterro — ela disse, sua voz recuperando a firmeza. Ela olhou para Rita, e depois, desafiadoramente, para Bela. — Eu uso. Toda a raiva, toda a culpa que eu carrego por não ter falado naquela hora... eu vou usar como combustível. É por isso que esse plano vai dar certo. Porque eu não tenho mais medo de perder nada. E eu não vou me calar de novo.
Ela sentiu a mão de Rita apertar a sua, escondida do lado do sofá, longe do olhar de Bela. Naquele toque, Jessi não encontrou pena. Encontrou parceria. Encontrou alguém que, de alguma forma, entendia o peso de carregar uma culpa que não era totalmente sua.
O passado a definia, mas não a controlaria mais. Ele seria a sua arma.