Rita sentia o peso daquelas paredes, daquele silêncio. Era como se a ausência de Jessi deixasse mais espaço para os fantasmas do passado se manifestarem. Ela olhou para suas próprias mãos – mãos que sabiam dar forma à beleza, mãos que seu ex-marido dissera, em seus momentos mais doces, serem "presentes dos deuses". Agora, elas pareciam inúteis.
"Ele não era um monstro desde o início, sabia?" A voz de Rita ecoou baixa, quebrando o pacto de silêncio sem olhar para Bela. Ela fitava a janela, vendo o reflexo fantasmagórico da própria vida na escuridão do vidro. "Marcelo. Quando nos conhecemos, ele via a poesia que havia em um simples fio de ouro. Dizia que eu tinha o dom de dar alma ao metal."
Bela não respondeu imediatamente. O ruído do teclado parou. Era a única abertura que Rita receberia.
Rita começa a relembrar...
Eles se conheceram em uma feira de gemas. Ele, um jovem ourives com mais ambição do que clientes, ela, a herdeira da Joalheria Valença, carregando o peso de um legado. Ele mostrou a ela um desenho de um colar, inspirado nas constelações. "É para a minha mãe", ele mentiu, com uma timidez que ela mais tarde descobriu ser calculada. Rita, cuja vida era feita de beleza genuína, caiu naquela simulação de vulnerabilidade.
Foi ela quem o levou para dentro do negócio da família. "Pai, ele é brilhante", insistira. Ela o ensinou tudo o que sabia sobre as nuances dos diamantes, as ligas de metais preciosos, o toque preciso necessário para não estragar uma peça. Ele era um aprendiz rápido, ávido. Talvez ávido demais.
O casamento foi um conto de fadas, mas um daqueles onde a bruxa se disfarça de príncipe. Aos poucos, Marcelo foi sugando sua luz. "Deixa que eu cuido dos negócios, amor. Você foca na sua arte." Ele afastou-a dos livros contábeis, das reuniões com investidores. Ele registrou a coleção "Aurora" – sua obra-prima, inspirada no nascer do sol sobre a serra – apenas no nome dele. "É mais prático, Rita. Confia em mim."
E ela confiou. Como um pássaro que confia no galho até ele quebrar.
O estalo final foi um silêncio. O silêncio do cofre vazio. Ele sumira, e com ele, os originais da "Aurora", os clientes mais importantes e todo o capital de giro. A joalheria, o sonho de gerações da sua família, estava falida. O banco ligou para informar sobre o empréstimo impagável que ele contraiu em nome dos dois. A última mensagem dele foi um triunfo cruel: "A arte era sua, mas o negócio sempre foi meu. Cresce, Rita."
Rita percebeu que estava tremendo. A xícara tilintou contra o pires de forma discordante. "Eu era a artista", sussurrou, a voz carregada de uma raiva que se alimentava de tristeza. "Ele era só o vendedor. E ele não só me roubou, ele me apagou."
Bela fechou o laptop com um clique seco. Seu rosto era uma máscara de pedra lisa. "O amor é a ferramenta preferida dos homens incompetentes. Eles usam para nos convencer de que nossa força é fraqueza e sua ambição é virtude. Você confundiu uma aliança com uma submissão." Ela fez uma pausa, deixando as palavras cortantes ecoarem na sala. "Não cometa o mesmo erro duas vezes."
A frase caiu como uma lâmina. Era brutal, mas, no fundo, Rita sabia que era a verdade mais pura que ouvira desde que tudo desmoronou.
A porta da frente abriu-se com um ruído suave. Jessi entrou, trazendo consigo o cheio da noite e uma energia contida. Seus olhos, sempre atentos, encontraram os de Rita de imediato. Leu a angústia neles, a fragilidade pós-confissão.
"Deu certo", Jessi anunciou para Bela, mas seus pés já a levavam em direção ao sofá. "O contato está conosco. Passou a senha-mestra e os horários de patrulha." Sua voz era firme, mas seus movimentos, ao se sentar ao lado de Rita, eram surpreendentemente gentis.
Sem cerimônia, sem perguntas, Jessi colocou um braço firme ao redor dos ombros de Rita. Era um gesto de proteção pura, um abrigo contra os demônios que Bela invocara e o passado trouxera. O corpo de Jessi era sólido, quente, um porto seguro inesperado no meio do caos.
Bela observou, seus olhos analíticos passando do abraço para o rosto de Rita, que finalmente se virava, enterrando o rosto no ombro de Jessi por um breve, intenso momento.
"Bom", disse Bela, sua voz neutra. "O plano avança."
Mas naquele instante, o plano, o cofre, a vingança – tudo parecia secundário. Para Rita, a única coisa real era a solidez do braço de Jessi ao seu redor, a promessa silenciosa de que ela não estava mais sozinha. Ela estava se reconstruindo, e Jessi, com sua força silenciosa e sua própria bagagem de dores, era a fundação que ela não sabia que precisava encontrar. A arte poderia ter sido roubada, mas uma nova força, mais resiliente, começava a nascer em seu lugar.