"Doutor Dornelles, você se dedicou a despir a alma das pessoas em nome da ciência," Peçanha começou, apoiando-se casualmente em sua bengala de ébano. Ele usava um terno cinza-chumbo, impecável, o único elemento não-branco da sala. "Agora, precisa que eu encontre as páginas que sua falecida esposa usou para despir a moral de todo mundo."
Peçanha não acendeu o charuto, mas sentia falta do cheiro de fumaça barata para contrastar com o aroma caro de vetiver do Dr. Dornelles.
O psicanalista, que parecia ter envelhecido dez anos em três dias, estremeceu. "O 'Manuscrito de Safira' é uma bomba atômica, Detetive. Minha Serena... ela era intensa. O diário dela não é literatura, é dossiê. Se cair nas mãos erradas, é a elite de São Paulo caindo junto." Ele sussurrou a última parte, como se as paredes de vidro pudessem ouvir.
"A 'Safira'," Peçanha repetiu, o tom de voz seco e divertido. "Transparente, mas capaz de cortar. Doutor, vamos pular a parte da tragédia. Quem sabia da existência dessa obra-prima da fofoca erótica?"
Dornelles engoliu seco. "Apenas... Lívia. Minha assistente, e curadora do acervo de Serena. Ela é de confiança." Ele tentou parecer firme, mas falhou miseravelmente. "O manuscrito estava em um compartimento secreto na estante de vinhos, aqui na cobertura. Lívia foi a última a tocá-lo, dois dias atrás."
Peçanha deu um passo à frente, olhando pela janela para a megalópole sob seus pés. "Assistentes de confiança são como amantes honestas, Doutor. Existem, mas nunca nos casos que pagam bem." Ele riu, um som baixo e cínico. "Onde está essa pérola de lealdade agora?"
"Lá embaixo," Dornelles indicou com um dedo trêmulo. "Na Galeria Privada 'Ícaro'. É onde guardamos a coleção de arte e fazemos uns leilões... particulares. Ela disse que está 'catalogando a herança de Serena' e precisava de silêncio."
"Silêncio," Peçanha murmurou. Ele ajeitou a gravata borboleta e pegou sua bengala. "Eu adoro quando o suspeito principal se esconde no meio do crime. Doutor, o pecado não se cura, só se veste de outra roupa. Eu vou descer até o 'Ícaro'. Parece que alguém trocou o divã pela adrenalina."
Na porta, Peçanha parou, sem se virar. "Só um toque profissional: tente parecer menos aliviado por eu estar aqui. Fica mais fácil para mim fingir que me importo com o seu trauma."
